Estava ali eu embrenhado na leitura do tópico do Pastis quando se me aflorou à memória estes casos:
João Maria, o menino que não sabe o que é sentir dor - dn - DN
Conseguem dar a importância à dor? Sobreviveríamos nós, sem esta?...
Pode cair pelas escadas, partir as duas pernas e continuar a andar como se nada fosse. Ou saltar de um terceiro andar. Pode trincar a língua até ficar sem ela. Sem pestanejar. O João Maria não é um super-herói, mas parece. Tem três anos, vive em Leça da Palmeira e nasceu sem a capacidade de sentir dor.
À primeira vista, dir-se-ia que não se trata de um problema mas de uma felicidade. Mas não é. Que o digam os pais, que se viram do avesso para evitar que o filho se magoe. Uma luta diária, uma vigia permanente, obsessiva. Tudo porque o João Maria não faz ideia do que é um "dói-dói".
O primeiro sinal de que o João não era um menino como os outros foi dado logo nos primeiros meses. As vacinas não o faziam chorar. E mesmo quando a enfermeira preparava os pais para os gritos do bebé - "Esta vai doer, pais, agarrem-no bem" -, João Maria nem sequer encolhia o braço. Os pais, porém, não faziam ideia do que estava por detrás desta estranha valentia. Nem sonhavam ainda que havia uma doença rara chamada insensibilidade congénita à dor com anidrose.
Com o nascimento dos primeiros dentes começaram os problemas a sério. O filho de Maria Teresa e João Paulo Barbosa formou uma ferida na língua que não sarava. Correram todos os médicos, mas ninguém acertava no problema. A fralda de pano presa à chucha chegou a estar empapada em sangue. Ao mesmo tempo, João Maria tinha febre. Sempre. Os pais, convencidos de que estava constipado, agasalhavam-no o mais que podiam. A febre, em vez de baixar, subia, e mantinha-se mesmo com os antipiréticos.
É que a doença deste pequeno "super-herói" não se fica só pela insensibilidade à dor. João Maria também não transpira. Ou seja, o seu corpo não regula a temperatura. Sobreaquece no Verão e enregela no Inverno. Ao agasalharem-no, os pais não estavam a ajudar. Mas isso só viriam a descobrir mais tarde.
Sem saberem o que fazer, os pais do pequeno João ligaram a um primo, dermatologista. Ao ouvi-los, e alarmado por um estudo que, curiosamente, tinha feito sobre o único caso português conhecido de insensibilidade à dor com anidrose (ausência de transpiração), o primo perguntou: "Ele sua?" Foi a pergunta que deu origem ao diagnóstico. Com efeito, e fazendo uma retrospectiva, os pais nunca tinham visto o João Maria suar. Daí ao diagnóstico, em Coimbra, foi um passo. Daí ao susto, às dúvidas, ao medo quanto ao futuro foi um instante. Como ensinar uma criança a ter cuidado com o fogo quando não sente dor? Como evitar que se morda? Como saber se tem uma hérnia, uma apendicite, uma perna partida, se nunca se queixa?
A dor é essencial para aprender
Trata-se, além do mais, de uma questão filosófica. É de Aristóteles a frase: "Não é possível aprender sem dor." Mas quem nasceu sem o problema do João Maria nunca pa- rou para pensar na importância da dor. Fugimos dela, tomamos comprimidos para a atenuar, desejamos que desapareça. Sem pensar que precisamos dela para nos lembrarmos do que não devemos fazer. É a dor que nos baliza os limites. João Maria não conhece a fronteira entre o que pode fazer e o que o coloca em risco.
É por isso que salta de pernas direitas, sem flectir os joelhos, sem defender as articulações. É por isso que galga degraus e muros, e rasga braços e pernas, e golpeia a cara sem deitar uma lágrima. E é também por isso que os pais temem pelo futuro do seu esqueleto, tantas vezes massacrado sem que ninguém dê conta. Todas as noites, pai e mãe tacteiam o seu pequeno corpo, em busca de inchaços que indiciem lesões internas, ossos partidos, doenças silenciosas.
Feito o diagnóstico, aos seis meses de idade, as peças do puzzle começaram a juntar-se. Compreendeu-se finalmente a origem da ferida na língua, provocada pelos seus próprios dentes. João Maria fazia o que todos os bebés fazem: explorava o próprio corpo. Com uma grande diferença: como não nasceu habilitado para sentir dor, podia (e pode) trincar a língua até se ferir gravemente. No Hospital Maria Pia, no Porto, recomendaram que lhe arrancassem os dentes todos, única forma de evitar que se auto-mutilasse. Os pais preferiram pesquisar outras soluções.
A falta de informação e o desnorte são sensações comuns a quem enfrenta uma doença rara, diz a psicóloga Maria João Pimentel: "Estes pais passam pelas mesmas fases que os pais com filhos doentes, ou seja, há o momento do choque, da negação, da revolta, mas têm ainda acrescido o facto de não haver informação sobre a doença de que sofrem." Maria João Pimentel presta auxílio a pais e doentes da Raríssimas, uma associação de doenças mentais e raras (ver pág. ao lado). E sabe que todos os que passam por uma doença rara sentem o mesmo: "Sentem-se perdidos. E muito sozinhos."
À primeira vista, dir-se-ia que não se trata de um problema mas de uma felicidade. Mas não é. Que o digam os pais, que se viram do avesso para evitar que o filho se magoe. Uma luta diária, uma vigia permanente, obsessiva. Tudo porque o João Maria não faz ideia do que é um "dói-dói".
O primeiro sinal de que o João não era um menino como os outros foi dado logo nos primeiros meses. As vacinas não o faziam chorar. E mesmo quando a enfermeira preparava os pais para os gritos do bebé - "Esta vai doer, pais, agarrem-no bem" -, João Maria nem sequer encolhia o braço. Os pais, porém, não faziam ideia do que estava por detrás desta estranha valentia. Nem sonhavam ainda que havia uma doença rara chamada insensibilidade congénita à dor com anidrose.
Com o nascimento dos primeiros dentes começaram os problemas a sério. O filho de Maria Teresa e João Paulo Barbosa formou uma ferida na língua que não sarava. Correram todos os médicos, mas ninguém acertava no problema. A fralda de pano presa à chucha chegou a estar empapada em sangue. Ao mesmo tempo, João Maria tinha febre. Sempre. Os pais, convencidos de que estava constipado, agasalhavam-no o mais que podiam. A febre, em vez de baixar, subia, e mantinha-se mesmo com os antipiréticos.
É que a doença deste pequeno "super-herói" não se fica só pela insensibilidade à dor. João Maria também não transpira. Ou seja, o seu corpo não regula a temperatura. Sobreaquece no Verão e enregela no Inverno. Ao agasalharem-no, os pais não estavam a ajudar. Mas isso só viriam a descobrir mais tarde.
Sem saberem o que fazer, os pais do pequeno João ligaram a um primo, dermatologista. Ao ouvi-los, e alarmado por um estudo que, curiosamente, tinha feito sobre o único caso português conhecido de insensibilidade à dor com anidrose (ausência de transpiração), o primo perguntou: "Ele sua?" Foi a pergunta que deu origem ao diagnóstico. Com efeito, e fazendo uma retrospectiva, os pais nunca tinham visto o João Maria suar. Daí ao diagnóstico, em Coimbra, foi um passo. Daí ao susto, às dúvidas, ao medo quanto ao futuro foi um instante. Como ensinar uma criança a ter cuidado com o fogo quando não sente dor? Como evitar que se morda? Como saber se tem uma hérnia, uma apendicite, uma perna partida, se nunca se queixa?
A dor é essencial para aprender
Trata-se, além do mais, de uma questão filosófica. É de Aristóteles a frase: "Não é possível aprender sem dor." Mas quem nasceu sem o problema do João Maria nunca pa- rou para pensar na importância da dor. Fugimos dela, tomamos comprimidos para a atenuar, desejamos que desapareça. Sem pensar que precisamos dela para nos lembrarmos do que não devemos fazer. É a dor que nos baliza os limites. João Maria não conhece a fronteira entre o que pode fazer e o que o coloca em risco.
É por isso que salta de pernas direitas, sem flectir os joelhos, sem defender as articulações. É por isso que galga degraus e muros, e rasga braços e pernas, e golpeia a cara sem deitar uma lágrima. E é também por isso que os pais temem pelo futuro do seu esqueleto, tantas vezes massacrado sem que ninguém dê conta. Todas as noites, pai e mãe tacteiam o seu pequeno corpo, em busca de inchaços que indiciem lesões internas, ossos partidos, doenças silenciosas.
Feito o diagnóstico, aos seis meses de idade, as peças do puzzle começaram a juntar-se. Compreendeu-se finalmente a origem da ferida na língua, provocada pelos seus próprios dentes. João Maria fazia o que todos os bebés fazem: explorava o próprio corpo. Com uma grande diferença: como não nasceu habilitado para sentir dor, podia (e pode) trincar a língua até se ferir gravemente. No Hospital Maria Pia, no Porto, recomendaram que lhe arrancassem os dentes todos, única forma de evitar que se auto-mutilasse. Os pais preferiram pesquisar outras soluções.
A falta de informação e o desnorte são sensações comuns a quem enfrenta uma doença rara, diz a psicóloga Maria João Pimentel: "Estes pais passam pelas mesmas fases que os pais com filhos doentes, ou seja, há o momento do choque, da negação, da revolta, mas têm ainda acrescido o facto de não haver informação sobre a doença de que sofrem." Maria João Pimentel presta auxílio a pais e doentes da Raríssimas, uma associação de doenças mentais e raras (ver pág. ao lado). E sabe que todos os que passam por uma doença rara sentem o mesmo: "Sentem-se perdidos. E muito sozinhos."
Conseguem dar a importância à dor? Sobreviveríamos nós, sem esta?...
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