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"O meu Pai" - Luís Osório

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    "O meu Pai" - Luís Osório

    Morreu tranquilo e apaziguado, fez ontem uma semana. Na última semana viu todas as pessoas que verdadeiramente lhe interessava ver – fez-nos rir, mostrou-se feliz pelo prémio de investigação que deveria receber em Novembro, mas ao contrário de todas as outras vezes não se comprometeu com mais uma redenção.

    Há vinte e sete anos, também num dia de calor, fiquei destroçado. Informou-me que talvez fosse a nossa última conversa porque lhe fora diagnosticada uma doença que se mostrava fatal e infalível no seu rasto de destruição. Nesse dia, nesses primeiros dias, deixou-se ficar por casa, afundou-se na cama do quarto de sempre, contou as horas que faltavam para iniciar a viagem para o fim. Tudo nele parecia derrota, não pelo medo da morte mas pela irremediável sensação de que não se cumprira, pela terrível ideia que desperdiçara a sua vida.


    Deu a volta às gavetas. Queimou as fotografias que tinha, as suas memórias, os sinais do que julgava ser o seu falhanço. Ficou assim algumas semanas e, num dia igual aos outros, sem que conseguisse explicar porquê, saiu do quarto e jurou aos mais próximos que decidira vencer a doença. Foi aí que renasceu. Foi nesse preciso momento que começou a viagem que o faria chegar, contra todas as expectativas, a um sítio onde apenas estão os que partem de consciência tranquila.


    Esta é então a história de um homem que provou não existirem impossíveis. O homem que decidiu tirar num só dia todos os dentes porque o médico lhe disse que eram potenciais focos de infecção. O que fez questão de assumir a doença publicamente para combater a discriminação. O que resistiu à toxoplasmose, tuberculose, linfoma, meningite, septicemia, hepatite. O que esteve três vezes em coma e sem muitas esperanças de sobrevivência. O que durante tantos e tantos anos tomou mais de 50 comprimidos todos os dias. O que fez todas as quimioterapias possíveis. O que aproveitou os momentos disponíveis para investigar sobre o fado, para escrever várias colecções de referência, para ganhar prémios, dirigir o trabalho de associações de combate à discriminação, coordenar acções de formação e ajudar dezenas de doentes a acreditar que na vida cada um deve lutar até ao fim e não desistir.
    Esta é a história do meu pai. De quem estive afastado uma vida e que tantas vezes não compreendi, o meu pai – militante comunista, exilado em Paris, co-fundador do grupo de Teatro A Barraca e filho de Alice, a mulher da sua vida. José Manuel Osório, chamava-se. Fez ontem uma semana que partiu. Tranquilo e apaziguado.
    Nos últimos anos coordenou duas monumentais colecções de fado. Em 2005, organizou a convite de João Pinto de Sousa o projecto Todos os Fados, publicado pela revista Visão. Esteve na primeira linha entre os que fundaram o Museu do Fado, coordenou as Festas da Cidade de Lisboa e tudo isso depois de estar doente – quando quase todos pensavam em surdina que não acabaria o que tinha em mãos, ele pensava na próxima ideia a concretizar.


    Essa é a sua marca, o motivo pelo qual me orgulho. À sombra da desconfiança de todos os olhares e com o terrível peso de uma doença que o destruía por dentro, soube e teve a coragem de construir uma obra e o sentido que lhe faltava.
    Ao contrário das outras vezes, tantas e tantas que a sua morte foi antecipada, sabia que agora o tempo se estreitara. A última vez que estive com ele a sós não me falou de nenhum projecto que quisesse terminar. Limitou-se a sorrir. Estava pronto.
    O primeiro texto que escrevi foi uma cunha sua. Joaquim Benite, ao tempo chefe de redacção do jornal Diário recebeu-me a seu pedido – «o teu pai está convencido que tens talento, diz-me coisas». Escrevi dois textos: sobre o movimento skinhead e uma entrevista ao Rodrigo Leão.
    A primeira vez que fui sócio do Benfica foi ele que me inscreveu. Entrei pela sua mão na sede da Rua Jardim do Regedor, onde homens jogavam bilhar e comentavam jogos da véspera. Que felicidade a minha.


    O primeiro filme interdito a maiores de 18 anos vi com ele. Nessa noite a RTP anunciara o Pato com Laranja, um erótico italiano e a avó Alice pediu-lhe para me tirar de casa. Para compensar levou-me ao Roma onde estava em exibição Pink Floyd The Wall. Não me parece que, em algum momento, lhe tenha passado pela cabeça que talvez aquelas imagens fossem demasiado violentas para uma criança que ainda não completara os dez anos. E não fizeram, pai.


    A primeira vez que me deitei de madrugada foi depois de uma borga com ele. O primeiro concerto a que assisti foi com ele. Apresentou-me a Cunhal, Manuel Alegre, José Mário Branco, Ferré, Chico Buarque. O ursinho com que adormecia na infância era o mesmo que o adormecia…
    No 8.º ano, por força da puberdade, tive seis negativas no segundo período. Convidou-me para jantar e, como se nada fosse, perguntou-me pelas notas. Informei-o de que tudo estava bem, como podia estar mal? Impassível, sem elevar a voz, disse-me que talvez existisse um equívoco: «Esta tarde estive no liceu e pareceu-me ter visto seis negativas. Não quero saber mais nada nem falar mais disto. Mas se for verdade quero que resolvas isso. Não tenho que me preocupar, pois não?».


    Numa longa conversa, publicada num livro, confessou-me que gostaria de ouvir, antes de morrer, o Com que Voz de Amália Rodrigues. Se tivesse tempo escutaria ainda Maria Callas a interpretar ‘Casta Diva’, uma ária da Norma, de Vincenzo Bellini. Jantaria um bife no Pap’Açorda e arrumaria os livros no quarto para separar os que não podiam deixar de ficar para mim.


    Oiço então Amália. E termino com as suas palavras: «Os meus dois netos são um caso à parte. É natural que olhe para eles de uma forma diferente, é até natural que olhe para eles como nunca olhei para ti. Mas normalmente olho para ti quando estás distraído. Assim que percebes, desvio o olhar. Como os dois miúdos não me perguntam ‘porque estás a olhar para mim?’, olho sem qualquer preocupação. Se um dia me perguntarem, também saberei desviar o olhar».


    * A última palavra gostaria que ficasse para Ana Campos dos Reis, directora de serviços de apoio ao VIH da Santa Casa da Misericórdia. Ela foi o seu anjo, ela é um anjo. E para Tozé Brito e Manuel Faria, eles sabem porquê.
    O meu pai - Opiniao - Sol

    #2
    nunca o conheci mais gordo.

    Comentário


      #3
      Originalmente Colocado por CletoZaca Ver Post
      nunca o conheci mais gordo.
      Fica aqui um pedido á moderação:criar um modo "Não Gosto" para colocar nos posts.

      Comentário


        #4
        Originalmente Colocado por PeugeotSales Ver Post
        Fica aqui um pedido á moderação:criar um modo "Não Gosto" para colocar nos posts.
        E quando chegasse a um determinado numero de "não gosto" era banido!!!!

        Comentário


          #5
          Originalmente Colocado por Danone Ver Post
          E quando chegasse a um determinado numero de "não gosto" era banido!!!!
          Talvez este acabe por se banir a si próprio, e pelos seus próprios "meios"!

          Comentário


            #6
            Originalmente Colocado por LinoMarques Ver Post
            Talvez este acabe por se banir a si próprio, e pelos seus próprios "meios"!
            Deus te oiça!

            Comentário


              #7
              apesar de nunca o "ter conhecido mais gordo", como disseram acima, li o artigo e fiquei a imaginar no que seria um filho escrever sobre a morte do seu próprio pai. espero que o autor da brilhante posta aí de cima tenha refletido também antes de escrever estas maravilhosas 5 palavras.

              Comentário


                #8
                o meu comentário ficou no post inicial...

                Comentário


                  #9
                  todos os dias morrem pais e os filhos ficam ca para os chorar, porque e que este e diferente dos outros e tem direito a tempo de antena? nunca o conheci e nunca o vi mais gordo. so estou a ser sincero.

                  Comentário


                    #10
                    Originalmente Colocado por CletoZaca Ver Post
                    todos os dias morrem pais e os filhos ficam ca para os chorar, porque e que este e diferente dos outros e tem direito a tempo de antena? nunca o conheci e nunca o vi mais gordo. so estou a ser sincero.
                    Então só tinhas uma opção: fechavas a página e seguias a tua vida.

                    Comentário


                      #11
                      Quando não conhecemos, enchemo-nos de humildade e perguntamos "Quem é?". De certeza que sairemos um bocadinho mais cultos.

                      Deixando de parte o que este homem suportou enquanto doente com VIH, perde-se uma personalidade de uma enorme inteligência e iniciativa, basta ver todos os projectos relacionados com as artes em que deu o seu contributo.

                      Aqui lhe presto a minha homenagem

                      Comentário


                        #12
                        Originalmente Colocado por CletoZaca Ver Post
                        todos os dias morrem pais e os filhos ficam ca para os chorar, porque e que este e diferente dos outros e tem direito a tempo de antena? nunca o conheci e nunca o vi mais gordo. so estou a ser sincero.
                        Porque se dignou a escrever uma homenagem digna ao pai e a muitos outros doentes sem cara, que lutam contra as doenças a cada dia. A mim parece-me suficiente.

                        Comentário


                          #13
                          “Todos os dias morrem pais e os filhos ficam ca para os chorar, porque e que este e diferente dos outros e tem direito a tempo de antena? nunca o conheci e nunca o vi mais gordo. so estou a ser sincero.”
                          Quem tu “nunca viste mais gordo” era um conhecido fadista e por fim estudioso do fado, mas principalmente, foi das primeiras personalidades portuguesas a assumir ser portador do vírus HIV, lutador nato, depois de diagnosticado a doença, fez inúmeras de campanhas por este país fora sobre o assunto, como viver, como evitá-la e principalmente como aceitar as pessoas que sofriam dessa doença.
                          Lembro me de a muitos anos atrás, o filho dele tinha um talkshow, com a Ana Drago, penso que na rtp2 e o pai foi convidado, marcou me essa entrevista.
                          Saber não custa, a ignorância é um mal que infelizmente esta presente em todo o lado.

                          Comentário


                            #14
                            morreu com sida? como e que a apanhou?

                            Comentário


                              #15
                              Desde quando isso é o que importa aqui?

                              Comentário


                                #16
                                Originalmente Colocado por CletoZaca Ver Post
                                nunca o conheci mais gordo.
                                Originalmente Colocado por CletoZaca Ver Post
                                todos os dias morrem pais e os filhos ficam ca para os chorar, porque e que este e diferente dos outros e tem direito a tempo de antena? nunca o conheci e nunca o vi mais gordo. so estou a ser sincero.
                                Originalmente Colocado por CletoZaca Ver Post
                                morreu com sida? como e que a apanhou?
                                O que vale é que as férias escolares já estão mais próximas do fim...

                                Comentário


                                  #17
                                  Muito, muito bem.

                                  Comentário


                                    #18
                                    Originalmente Colocado por CletoZaca Ver Post
                                    morreu com sida? como e que a apanhou?
                                    Espero que nunca te venha a acontecer, mas se algum dia tu ou algum familiar teu (um pai, um filho, um irmão, etc) contraír o vírus, quero ver se sempre mandas postas de pescada iguais a esta. Gente como tu devia pagar impostos (e bem pesados) por cada barbaridade como estas que escreves...

                                    Comentário


                                      #19
                                      Originalmente Colocado por CletoZaca Ver Post
                                      nunca o conheci mais gordo.
                                      Passas a conhecer: Assumiu cargos de chefia do jornal A Capital até 2007 e ainda do Rádio Clube Português até 2009.

                                      EDIT: O filho. Quem foi o pai está bem explícito no artigo.
                                      Editado pela última vez por Thatsme; 24 August 2011, 01:03.

                                      Comentário


                                        #20
                                        Originalmente Colocado por CletoZaca Ver Post
                                        nunca o conheci mais gordo.
                                        Há comentários que são de uma estupidez fenomenal!

                                        Só não percebo é como é que acontecem sucessivamente!

                                        Comentário


                                          #21
                                          É o senhor de que falaram há dias nas notícias, não é? O "mais velho" infectado, certo?


                                          Até pode não ser algo fora do comum e muita gente passará por perda semelhante, mas eu acho bonito um filho recordar assim o seu pai com saudade e orgulho.
                                          Para o mundo é "mais um" tipo que morreu de VIH/SIDA, mas é o pai dele. Para mim o meu pai não é apenas "mais um" seja do que for. É o meu pai, logo para o escritor o sentimento deve ser semelhante.

                                          Comentário


                                            #22
                                            De qualuqer forma, desviaram o asusnto, o mais importante aqui, é o belissimo texto que o filho dedicou ao pai.

                                            Comentário


                                              #23
                                              Que texto tão forte. E, se em algum lado ele puder lê-lo, com certeza terá a certeza que a sua passagem por aqui não foi em vão.

                                              Comentário

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