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António Coimbra de Matos

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    António Coimbra de Matos

    Agora que me fazem lembrar eu não sei se conhecem esta figura mas merece o uma atençãozinha:

    Vou pregar aqui nuns textos:
    Somos inseguros, imaturos, praticantes da transgressão na sombra, além de desorganizados, individualistas, garbosos, disponíveis. Nós, os portugueses, o que esperamos do chefe, do pai, do protector, é que decida por nós, que assuma a responsabilidade por nós, que saiba sempre a resposta. Mas que resposta para Portugal? O psicanalista António Coimbra de Matos faz o diagnóstico de um país deprimido, que, em crise, se olha desamparado. Coimbra de Matos nasceu em 1929 numa aldeia do Douro. É um dos mais prestigiados psicanalistas portugueses. No seu consultório há uma fotografia dos vinhedos, da terra sulcada, mesmo em frente à porta de entrada. Depois, olhando à esquerda, há a secretária, o divã, o cadeirão onde ouve; e folhas e livros e jornais em quantidade e em desalinho. À direita há dois pequenos sofás onde nos instalámos. É um fumador inveterado, nas suas próprias palavras. Foi neste ambiente que, em quase duas horas, se falou de Portugal. Frequentemente parecia que estávamos a falar de pessoas que conhecemos de todos os dias. Pessoas como nós, de nós. Pode-se pôr um país no divã? O que constitui a nossa identidade? Coimbra de Matos começou por falar disto, antes mesmo da primeira pergunta. "
    " ... Classicamente, a psicologia e a psicanálise descrevem um mecanismo de construção da identidade: por identificação de modelos. A pessoa identifica-se com o pai, com a mãe, o professor, um jogador de futebol, um grande filósofo. Fazemos mais dois processos de identificação que são mais importantes do que este. Um joga com a identificação imagoico-imagética, em que nos identificamos à imago e à imagem que os nossos pais e o mundo nos atribuíram."


    Temos um desejo de corresponder a essa identidade?
    Coimbra de Matos: Os portugueses têm muito isto. Vamos um bocado nessa cantiga - assimilar a identidade dos nossos políticos, dos nossos pais, o que a História nos vai infiltrando. O indivíduo assimila a imago, que é uma coisa menos consciente, e a imagem, que é uma coisa mais nítida, que o outro atribui.


    E pretendemos transcender essa expectativa que têm em nós?
    Coimbra de Matos: Isso já inclui outro aspecto, nem sempre lá vamos. Há outro processo de identificação, mais importante - a idiomórfica -, em que nos identificamos aos nossos projectos, àquilo que pensamos que somos e, fundamentalmente, àquilo que desejamos ser.


    Isso já tem muito de construção individual.
    Coimbra de Matos: Tem. E aí talvez os portugueses falhem um bocado. Têm tendência a repetir, a ser conservadores. São inovadores em circunstâncias de crise, de stress, quando emigram. Sem dificuldades, não são muito inovadores. Por exemplo, quando se diz que estamos a explorar o mar, está impresso que é uma coisa herdada da História. Somos um pouco marinheiros, emigrámos para a Índia, para África, para o Brasil. É quase uma continuidade do que fomos.


    Foi no mar, ou através do mar, que nos transcendemos. Pode ser um pouco a herança desse mito.
    Coimbra de Matos: Pois pode, mas também nos podemos transcender de outro modo. Sou apologista da inovação. A grande mudança que temos de fazer é inovar mais e repetir menos. Na vida pessoal também é isso.


    Por que é que somos tão acanhados? Por que é que, se não em condições excepcionais, não ousamos e preferimos qualquer coisa que, mesmo que limitado, não nos ameaça?
    Coimbra de Matos: Não sei responder. Talvez uma das razões seja o facto de ser uma cultura mais dominada por influência materna do que por influência paterna. Os pais são mais ausentes, saíram de casa, iam para o mar. A influência materna é mais conservadora. Quando uma criança está com medo, aflita, a mãe dá-lhe uma mão, o pai dá-lhe um pontapé no cu.


    Qual é que é a melhor maneira de aprender?
    Coimbra de Matos: São as duas, deve haver um certo equilíbrio. Agora já é diferente, mas na nossa cultura o pai não intervinha muito. Ainda agora um cardeal português disse, com bestialidade, que as mães deviam ficar em casa porque eram as educadoras dos meninos.


    Por que é que diz que isso é uma bestialidade?
    Coimbra de Matos: Porque os pais também são educadores, também têm responsabilidades educativas. E a mãe, para educar, não precisa de ficar em casa. Pelo contrário, se fica em casa, tem pouco mundo e transmite pouco mundo aos filhos. A mulher deve trabalhar e deve sair para poder trazer o mundo para casa. Um psicanalista francês com quem trabalhei, um tipo inteligente, também insistia nisso: dizia que a mãe ficava em casa e o pai trazia a realidade, era o representante da realidade.

    É sobretudo um tempo. A maneira como os nossos filhos e os nossos netos são educados é muito diferente daquela como os nossos pais e os nossos avós foram educados.
    Coimbra de Matos: E o pai também é cada vez mais presente como educador. Mesmo a sociedade portuguesa avançou. No tempo em que era professor na Faculdade de Psicologia, a maior parte dos meus colegas referia-se aos alunos assim: "No nosso tempo é que havia bons alunos, agora não estudam, não querem saber." A minha percepção é muito diferente. Os alunos actuais são muito mais interessantes, cultos e curiosos do que os do meu tempo. Ainda estamos muito presos ao in illo tempore passado.


    A pretexto do mar, falou de preferirmos a repetição e a segurança e de arrojarmos pouco. Que outras características identificaria como sendo dominantes nos portugueses?
    Coimbra de Matos: Portugal é e sempre foi um país pobre. Não é um país com grandes recursos naturais. Isso fez de nós nómadas, viajantes, andámos à procura de coisas melhores. Se entrarmos de carro ou de comboio em Portugal, vindos de Espanha, e de avião ainda se vê mais, vêem-se pedregulhos, terrenos incultos. Isto não nos permitiu virarmo-nos para nós próprios, desenvolver as nossas próprias capacidades, ver os nossos próprios recursos.
    A Suíça também não tem grandes recursos naturais. É certo que a Suíça é uma construção recente e nós somos um país com quase nove séculos.
    Era um território de passagem. Nós não somos um sítio de passagem. As pessoas vêm e atracam aqui. Temos uma posição estratégicaextraordinária e não explorámos isso suficientemente.


    A Suíça, a Alemanha, países do Centro da Europa, têm uma enorme capacidade de se reconstruir. Nós temos um adiamento sucessivo desse projecto que é refazermo-nos, reeducarmo-nos, florescermos. Concorda com isto?
    Coimbra de Matos: Talvez, mais nos últimos cem anos. Somos um país pouco virado para o futuro. Recordo-me que no tempo do Salazar veio cá um ministro do Franco, que foi recebido no aeroporto por um ministro do Salazar. O ministro espanhol fez uma discursata dizendo que Espanha estava no bom caminho, a montar indústrias novas, a abrir o comércio com o Norte de África; o ministro português respondeu-lhe de uma forma pataroca, que vinha nos jornais no dia seguinte, num discurso inflamado: "Portugal pode não saber para onde vai, mas sabe como veio e onde está." Claro que isto era numa altura diferente, mas estamos demasiado presos às glórias do passado. Mudámos pouco.


    Mudamos pouco porque não temos confiança em nós próprios? Estamos a falar das coisas de que os seus pacientes falam?, do medo, da falta de auto-estima.
    Coimbra de Matos: Há outra coisa de que temos de falar: de países protestantes e de países católicos. Os protestantes são mais rígidos, mas introduzem mais mudança; aliás, produziram uma revolução dentro do próprio cristianismo. A religião católica é muito mais conservadora do que a protestante.
    Um exemplo que conheço bem: a psicanálise tem sofrido mudanças importantes principalmente nos Estados Unidos, em Inglaterra, na Alemanha; nos países latinos, muito pouco, em França estão cristalizados, mais do que nós. Isto tem que ver com a cultura religiosa.


    A religião contamina tudo, a maneira como estamos em família, como socializamos, a maneira como encaramos o trabalho, a vida. Que traços identificam a nossa matriz cristã?
    Coimbra de Matos: Somos um povo que acredita facilmente em qualquer coisa. Quando se vai a congressos internacionais nota-se que, quando aparece uma ideia nova, os franceses, os italianos, ficam surpreendidos e desconfiados. Os ingleses, os alemães, mais os americanos ficam curiosos, têm maior apetência pela mudança. Perante o novo e diferente, temos sempre uma dupla atitude: por um lado receio e por outro lado fascínio. Quando somos mais doentes, predomina o receio, quando somos mais saudáveis, predomina o fascínio. Nós estamos mais do lado doentio.


    Lidamos mal com o conflito e com a interpelação? Por que é que o outro discordar de nós é sentido pelos portugueses como uma forma de afrontamento, de intimidação? Tudo é demasiado pessoal.
    Coimbra de Matos: Confirmo isso. Se fizer uma pergunta a um conferencista, discordando dele, num congresso em Portugal, sou acusado de ser agressivo. Se for num congresso internacional, isso é completamente aceite. Aqui somos muito narcísicos, ficamos logo ofendidos. Discordar é ofender o outro.


    Isso é um traço de narcisismo?
    Coimbra de Matos: É, não aceitamos bem que o outro discorde de nós, sentimos isso como uma diminuição.


    Como é que ficamos menos vulneráveis, menos narcísicos? Como é que aprendemos a lidar com a crítica e aquilo que sentimos como sendo a agressividade do outro?
    Coimbra de Matos: A causa psicológica assenta num sentimento de inferioridade. Se a pessoa se sente inferior, qualquer discordância do outro é sentida como uma ofensa pessoal. Se está consciente da sua capacidade, se não tem complexos de inferioridade...


    Como é que se trabalha este sentimento de inferioridade? É uma coisa importante na maneira como interagimos com o colectivo.
    Coimbra de Matos: Começa na família e depois na sociedade em geral: os portugueses tornam-se autónomos muito tarde. Por razões financeiras e por razões culturais. Mesmo nos anos 1960, em que se vivia relativamente bem, as pessoas saíam muito tarde de casa. É-se muito ligado à família de origem. Desde pequeno há uma cultura de concentrar, proteger, e não de fomentar a autonomia.


    O que podemos extrair disso é a ideia de que todos juntos somos mais fortes? É por isso que devemos permanecer no espaço da família, resguardados? Por que é que não se incentiva a independência?
    Coimbra de Matos: Vem da geração anterior. Os pais têm dificuldade em promover a independência dos filhos, sentem isso como uma perda da influência deles. Vê-se também ao nível pedagógico; a maior parte dos professores, se um aluno tem ideias diferentes das dele, sente isso mal; gosta que o aluno copie as ideias do mestre. Não gostamos de ser contestados pelos mais novos.


    Isso é considerado uma insolência. Temos um ditado que traduz isso bem: "Já a formiga tem catarro."
    Coimbra de Matos: Pois é, mas não devia ser. Os mais novos trazem ideias novas.


    Então, somos inseguros, tememos perder a influência, que o outro saiba mais. Somos imaturos?
    Coimbra de Matos: Suponho que temos uma circunstância cultural que não facilita a maturidade. No meio disto, há pessoas que conseguem amadurecer, mas o ambiente não é facilitador dessa autonomia, dessa coragem, dessa vontade de inovar, de explorar, de ser diferente.
    A progressão das pessoas e das sociedades depende das pessoas que estão na posição dos mais velhos - do animal alfa. Daquele que tem mais poder, mais conhecimentos, mais história. Não são os animais ómega, as crianças, que são menos audazes; são os pais que não lhes facilitam essa audácia. Somos uma cultura muito ligada aos sistemas de poder. [Numa hierarquia], a pessoa que está numa posição superior deve ser a mais responsável, não a que tem mais poder. Em relação à guarda e ao cuidado com as crianças, só há pouco tempo [a designação] mudou de "poder parental" para "responsabilidade parental". Na Suécia, há mais de 50 anos que é assim.


    Mas a seguir tornamo-nos nós nos mais velhos e replicamos o que vem de trás.
    Coimbra de Matos: Isso é. Ficamos ligados às pessoas do passado, aos pais, aos avós, à primeira namorada. Somos o povo da saudade.


    Ao mesmo tempo, temos a ideia de que a nossa identidade é constituída pela nossa memória e pela nossa história. O passado é aquilo que fomos e fizemos, é aquilo de que somos feitos.
    Coimbra de Matos: Mas da nossa identidade, nesta minha teoria idiomórfica, faz também parte aquilo que construímos e imaginamos, segundo os nossos anseios, antecipações, projectos.


    Essa construção e esse desígnio correspondem a um sair da casa dos pais, a uma libertação das referências do passado?
    Coimbra de Matos: A evolução natural é mais pela conquista do que pela perda. Há tempos ouvi um colega meu que dizia que a adolescência era um período terrível, em que se tinha de fazer o luto da infância, uma série de lutos. Respondi-lhe dizendo que nunca vi os adolescentes vestidos de preto. Conquista-se autonomia, capacidade de decidir por nossa conta. O que nos deve entusiasmar é aquilo que não sabemos, não aquilo que sabemos. O verdadeiro cientista põe perguntas e tem poucas respostas, interessa-se por aquilo que não sabe e que quer descobrir, não por aquilo que já sabe.
    Na adolescência, aliada a uma curiosidade e a uma turbulência instigadora, temos uma coisa preciosa: a rede, que sabemos que está lá para o caso de cairmos.
    A adolescência é um período de autonomia assistida. Mas aí, mais uma vez, a geração dos mais velhos aceita mal. "Se quiseste sair de casa, agora aguenta-te." Há uma certa dificuldade em deixar partir e ficar como reserva de retaguarda.
    Isto levanta outra perspectiva, que é a dificuldade de aceitar a morte. Não aceitamos a nossa decadência, temos de manter os filhos dominados. Permitir a liberdade dos filhos é sentir que já não estamos cá a fazer nada, que somos menos úteis. Somos o primeiro animal que tem consciência da finitude da existência, os outros têm medo da morte imediata. Só há um processo para ultrapassar aquilo a que chamo "a angústia essencial", a angústia [que resulta da] consciência de que temos um prazo (apesar de nunca se ultrapassar totalmente, transcende-se um pouco isso): realizando alguma coisa, uma obra, transmitindo cultura.


    São pouquíssimos os casos de pessoas que acham que não se realizam através dos filhos e dos percursos dos filhos.
    Coimbra de Matos: Ter gosto que o filho progrida é normal e saudável. Ter gosto que o filho continue a obra do pai, que seja médico como o pai, que trate da quinta como o pai tratava, ou que siga o mesmo partido político, que tenha as mesmas ideias sociais, é um disparate. Porque não permite a evolução. A evolução faz-se por fracturas. Há duas ideias sobre o progresso; há a ideia de que o progresso se faz na continuidade - acrescenta-se àquilo que já se sabe, na mesma linha. Um exemplo disso era a evolução na continuidade do Marcelo Caetano; e há outra ideia de progresso, que é por ideias fracturantes. Sou apologista desta.


    Para que haja uma revolução.
    Coimbra de Matos: Sim. De facto, sou revolucionário. Há uma diferença entre revolução e revolta. Por vezes há apenas revoltas, mas depois volta tudo ao mesmo. Explosões de raiva. Com a revolução, as coisas não voltam ao mesmo sítio. Há aquela célebre expressão do ministro do Interior de Luís XVI, quando foi a tomada da Bastilha no início da Revolução Francesa: "Não é uma revolta, é uma revolução! Isto não vai ficar aqui."


    Há outra frase famosa no filme O Leopardo: "É preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma." É o oposto.
    Coimbra de Matos: As revoltas muitas vezes são isso: dão-se uns tiros, matam-se umas pessoas e depois tudo volta ao mesmo. Mesmo na área científica, as grandes mudanças são revoluções. São "a mudança de paradigma" de que o filósofo [Thomas S.] Kuhn falava.


    Insisto: o que é que tememos tanto nessa mudança de paradigma? Se quisermos levar isto até às últimas consequências, temos medo de desaparecer, de ser engolidos?
    Coimbra de Matos: Insegurança, incapacidade de gostar do novo e do diferente. Há uma entrevista muito bonita de um professor de Física Teórica, brasileiro, um homem de 50 e tal anos. Às tantas diz: "Repare, o que é bonito não é o que é simétrico, regular. É o que tem assimetria, pequenos defeitos." Tudo é impermanente, tudo é incerto, tudo é imperfeito. É isto que nos deve atrair. As pessoas mais conservadoras querem o permanente, a certeza, o perfeito.


    Somos um povo conservador?
    Coimbra de Matos: Não é só Portugal. A cultura europeia é mais conservadora, pelo peso da história, do que a cultura americana. Os brasileiros são muito mais abertos à novidade do que nós. É um fenómeno das culturas mais antigas que estão mais presas à história do que aquelas que têm uma história menor e que evoluíram mais depressa.


    E somos um povo deprimido? Tem investigado especialmente o tema da depressão.
    Coimbra de Matos: Há dois tipos de depressão: a depressão normal e a patológica. A depressão é sempre uma reacção, frequentemente diz-se que é à perda, mas eu penso que é à derrota. Perante a derrota, todos nos deprimimos, ficamos mais abatidos, com menos iniciativa, menos motivados para fazer coisas. Na depressão normal, isto é acompanhado por um sentimento de revolta. Na depressão patológica, o indivíduo resigna-se. Quando não se culpa a si próprio. É o que estão a fazer com esta crise actual: a culpa foi nossa, e aceitamos [que assim seja].


    Somos os da depressão patológica e os gregos são os da depressão "normal"?
    Coimbra de Matos: Sim. Resta saber se eles são capazes de ultrapassar a fase de revolta e ir para uma revolução para mudar o sistema. É um escândalo aquilo a que assistimos, a nível mundial. Estas ajudas que se oferecem aos países periféricos, dizem eles, não são ajudas nenhumas; emprestam-nos o dinheiro e depois pagamos com um juro brutal.
    É um pouco o que se passa no amor parental. Há um amor parental saudável, que é incondicional, que não está à espera de retribuição. E há um amor parental condicional: "Gosto muito de ti, meu filho, se prometeres proteger-nos, se não te esqueceres de nós." Esse amor condicional é o que nos estão a fazer os países centrais, a Alemanha, a França. "Depois vocês compram os nossos automóveis e devolvem o nosso dinheiro com juros."


    Essa narrativa vingou porque inculcámos a ideia de que fomos os responsáveis pela crise. A verdade é que gastámos acima das nossas possibilidades.
    Coimbra de Matos: Mas isso também nos foi facilitado por eles. As pessoas consumiam de mais porque os bancos forneciam dinheiro barato com hipotecas fáceis.


    Caímos num logro?
    Coimbra de Matos: Sim, caímos na ilusão.


    Na ilusão de que seríamos ricos como os outros, que viveríamos bem como os outros?
    Coimbra de Matos: Pois, e que não precisávamos de trabalhar. Aproveitámos mal. Os primeiros subsídios que vieram da União Europeia foram aproveitados para fazer grandes estradas, algumas para sítio nenhum. Houve responsabilidades de um lado e do outro. Não nos ensinaram que devíamos gastar aquele dinheiro de outra maneira.


    Falamos de Portugal como um filho a quem a educação não foi bem dada. Não nos ensinaram a gerir bem o dinheiro, não nos ensinaram a ser produtivos, não nos ensinaram a ser adultos e responsáveis. Mas estes que não nos ensinaram são a nossa família, os nossos antepassados.
    Coimbra de Matos: O que não temos tido é governantes políticos à altura, nunca tivemos, pelo menos desde o pós-25 de Abril, e antes pior ainda.


    Somos um povo dúplice, temos características muito contraditórias. Se por um lado somos pacíficos - os famosos brandos costumes -, revoltamo-nos pouco, por outro lado a agressividade há-de aparecer de alguma maneira... Como?
    Coimbra de Matos: Mais passivos, mais agressivos... Uma das coisas que não se cultivam em Portugal é a coisa intermédia, a afirmação pessoal, aquilo a que os psicólogos gostam de chamar "assertividade". A agressividade é uma coisa mais destrutiva. Na afirmação pessoal, na defesa dos interesses próprios, dos direitos de cada um, somos muito fracos. Se a pessoa se afirma, é sentida como agressiva.


    A própria assertividade é considerada uma forma de agressividade. Onde é que o clínico põe as fronteiras? O que é uma pessoa passiva, o que é uma pessoa assertiva e o que é uma pessoa agressiva?
    Coimbra de Matos: Posso dizer como costumava explicar aos alunos, servindo-me do exemplo da potência sexual. Uma coisa é ser impotente, outra coisa é ser omnipotente. O que é normal é ter a potência necessária, suficiente para a tarefa que se vai realizar. Num homem, ter potência sexual quando vai com uma mulher para a cama, está certo. Ficar em erecção enquanto está a conduzir um automóvel só serve para perturbar a condução. Se tenho de levantar um peso de um quilo, não preciso de contrair os músculos todos.


    Acha que somos de pavio curto, fervemos em pouca água?
    Coimbra de Matos: Não sei se como povo seremos isso. Mas é uma característica de pessoas que têm sentimentos de inferioridade e de impotência, fervem em pouca água. Quando se tem uma maior afirmação pessoal, um maior sentimento de competência, não se ferve em pouca água.


    Também parece que estamos sempre enredados numa mesma narrativa. Temos dificuldade em olharmo-nos de fora e perguntarmo-nos de uma outra maneira.
    Coimbra de Matos: Alguém dizia que o infortúnio da pergunta é a resposta [riso].


    Mas há uma resposta da qual precisamos: como é que saímos desta crise, como é que vivemos melhor. Quando as pessoas o procuram querem viver melhor, não aguentam viver mais em depressão, em sofrimento.
    Coimbra de Matos: Às pessoas deprimidas, que tentam suicídios, que não suportam a vida, uma das respostas que dou é: "O que você não suporta é a vida que leva, aquela que tem, porque é de facto insuportável. Isso não é a vida." As pessoas mais imaturas, e nós, o colectivo, não pensamos num futuro a longo prazo, pensamos num futuro a curto ou médio prazo. É preciso pensar a longo prazo para organizar as coisas bem.


    Por que é que somos tão pouco persistentes? No fundo, quando nos ocupamos do curto prazo, isso quer dizer que, ou não temos a persistência ou não temos a organização necessárias.
    Coimbra de Matos: Uma das razões é porque acreditamos na Virgem. Acreditamos sempre que Nosso Senhor ou a Virgem fazem milagres, que o Estado ou os papás vão resolver a situação. Acreditamos sempre que vem qualquer coisa que nos salva, que não o nosso esforço, o nosso trabalho, a nossa intervenção.
    Somos educados na base da religião a sermos adaptados, a obedecer ao pai, ao chefe, ao polícia, a Deus e a não interferir no meio.


    Gostaria de explorar o tópico da nossa relação com a autoridade e com o poder. Somos uma gente treinada para obedecer, esse é um dos nossos traços mais evidentes?
    Coimbra de Matos: Sim, somos um povo masoquista. Há duas grandes instituições que fazem estagnar as sociedades, a Igreja e as Forças Armadas (Freud falou disto em 1923). São instituições conservadoras e que se baseiam em obediência. Quando o chefe disser: "Atira-te para a frente", as pessoas vão sem pensar. Na Igreja, é a mesma coisa, todos de joelhos quando se levanta a hóstia.


    Somos dados à transgressão?
    Coimbra de Matos: Somos um povo obediente, e como a obediência não se pode conservar sempre, somos de transgressão clandestina. Transgredimos na sombra. Achamos que devemos pagar os impostos, mas fazemos tudo para não os pagar. Nos países nórdicos, de uma forma geral, as pessoas pagam os impostos porque têm consciência de que são utilizados de uma forma útil para todos. Aqui são utilizados para o BPN e outras coisas assim. Compreende-se que depois não apeteça pagá-los. É um ciclo vicioso.


    Um ciclo vicioso que só se interrompe com uma revolução?
    Coimbra de Matos: Sim, com uma mudança drástica.


    Como é que reconhece imediatamente uma pessoa autoritária?
    Coimbra de Matos: Não sei. Estou a lembrar-me de um caso que tinha, de um psiquiatra distinto, que se descrevia como um tipo muito generoso, nada autoritário. Eu notava que não era nada disso. Ele estava convencido de que era um tipo muito inteligente, e era-o, mas não tanto como julgava; e docemente impunha sempre a sua vontade, quer na família quer no trabalho. Uma coisa que acontecia quase sempre é que eu fazia uma interpretação e ele dizia: "Estou de acordo consigo, mas..." Um dia disse-lhe: "Já reparou que tem sempre que me provar que é mais inteligente que eu? Sempre que faço uma interpretação, a maior parte das vezes concorda, mas acrescenta sempre qualquer coisa. Para me mostrar que vai mais longe que eu." Só aí é que ele percebeu esta omnipotência. A última palavra estava sempre do lado dele. Também me lembro de um colega psicanalista que não tinha opiniões, só convicções. Nunca dizia: "Penso que." Só dizia: "É assim ou assado." Uma vez disse-lhe, ele até ficou zangado: "Não tens opiniões sobre nada, só tens convicções." Isto é o núcleo do autoritarismo: está convencido de que a única verdade é a sua e mais nenhuma [é válida].


    Isso é capaz de ser o primeiro elo da cadeia, mas logo a seguir vem submeter os outros, dominar os outros. Se a verdade é só uma, os outros têm de se submeter. Políticos autoritários são quase todos?
    Coimbra de Matos: São. O Mário Soares dá a volta, acaba por fazer o que quer. Mas em todo o caso tem um toque pouco autoritário. Como Presidente da República, uma vez recebeu-me oficialmente e quando vim embora acompanhou-me ao carro. "Senhor Presidente..." "Sou o anfitrião, a minha obrigação é acompanhar as visitas." É a capacidade de ser chefe. Poucos o fariam.


    E um marcadamente autoritário?
    Coimbra de Matos: O Cavaco [Silva]. Porque fica fixado naquelas posições, porque tem um medo enorme que o ponham em causa. Isto de não ter ido à escola [António Arroio, em Lisboa, onde o esperava uma manifestação] é um exemplo. O autoritário tem muito isto, não permite que alguém o critique, que duvide da sua supremacia. Em 1980, na Faculdade de Psicologia, uma aluna disse-me no fim de uma aula: "O professor tem uma coisa a que aqui não estamos habituados: fazemos uma pergunta e muitas vezes responde que não sabe. Os outros dizem sempre qualquer coisa."


    Também já disse algumas vezes na entrevista que não sabia responder.
    Coimbra de Matos: Talvez. Somos muito narcísicos e frágeis nesse aspecto. Não admitimos ser postos em causa.


    Somos um povo deprimido? Ou estamos deprimidos?
    Coimbra de Matos: Estamos deprimidos porque estamos em perda, em perda económica; a perda é sempre uma causa importante da depressão. E porque sentimos que estamos a ser tratados injustamente.


    Tendencialmente, somos deprimidos?
    Coimbra de Matos: Houve momentos em que não fomos um povo deprimido, mas na maior parte dos momentos históricos fomos. Não fomos um povo deprimido nas conquistas da primeira dinastia, na [aventura] expansionista, no tempo das descobertas. Fora isso, fomos um povo que perdeu quase sempre.


    Ao mesmo tempo com um lado garboso, amável. Podemos dizer o pior de nós próprios, mas quando nos sentimos ameaçados, tal como numa família, não admitimos uma palavra mais acintosa.
    Coimbra de Matos: Temos motivos para ser garbosos, para essa auto-estima. Temos factos importantes na nossa História, temos uma produção artística, literária importante, uma língua que se expandiu bastante para o tamanho do país. Mas fomos sempre um país mal governado.


    E muito desorganizado, todos dizem. Por que é que temos tanta dificuldade em interagir com o outro de um modo organizado? Por que é que temos este individualismo?
    Coimbra de Matos: Somos um país que não passou pelo feudalismo, pelas organizações em pequenos grupos. Fomos sempre um país de poder central, comandados pela corte, e o resto eram escravos. A nobreza portuguesa nunca teve grande força, a não ser a que vivia na corte, ou à custa da corte, como dizia o Francisco Sousa Tavares. E não fizemos a revolução industrial.


    Se este país se deitasse no divã, tinha emenda? O que é que precisaria mais que tudo, de trabalhar?
    Coimbra de Matos: Tinha de ter tempo e espaço para poder crescer por si próprio sem se apoiar noutros. A psicanálise é uma auto-análise assistida, o analista só dá uns toques, o paciente é que faz a análise. Como num parto. Quem faz o parto é a mulher, a parturiente; o parteiro interfere se houver alguma coisa, se tudo correr bem, não faz nada. Facilitar o crescimento pessoal, a autodeterminação, a identificação idiomórfica, segundo o seu próprio plano, o seu próprio projecto, e não seguir ideias do analista ou de outra pessoa qualquer. Sou a favor da emigração, de que as pessoas se movam, se cruzem. E sou a favor da depressão normal, com revolta e revolução! Devemos zangar-nos com os tipos que nos fazem mal.


    Incalculável Imperfeição: ENTREVISTA a Coimbra de Matos

    #2

    O ponto de partida da conversa era o prazer. E o nosso interlocutor um homem experiente, doutorado nos mistérios do inconsciente, nas emoções e nas contradições de que é composta a fibra humana. Mas António Coimbra de Matos, consagrado decano dos psicanalistas portugueses, não gosta de respostas taxativas: "Isto é assim, aquilo é assado...". Deixa sempre uma margem para a dúvida, desvaloriza: estamos melhor numa sociedade que celebra o prazer do que naquela que vivia na culpa. Diz-se um pragmático. Mas é sobretudo um otimista. Um psicanalista generoso que acredita nas pessoas e no que elas sabem sobre si.
    Aos 80 anos continua a formar e a ouvir. No seu amplo consultório - um terceiro andar de um prédio em Lisboa - em frente à secretaria atafulhada de papéis há um cadeirão desenhado por Charles Eames. É aqui que se senta. Ao lado, a célebre chaise longue de Le Corbusier. É aqui que deita os seus pacientes. "O colchão vermelho fui eu que o mandei fazer", diz, apontando para o divã. "Tive um paciente bastante largo que não ficava nada confortável aqui deitado. Agora, ficou melhor. Quer experimentar?"
    Nas sociedades atuais vivemos obcecados pela ideia do prazer? Penso que não. É uma ideia que se vende muito mas que não corresponde à realidade.
    Quando iniciou a sua vida profissional, nos anos 60, a palavra prazer não fazia parte do nosso léxico como hoje faz. Deste então ganhou uma imensa proporção. Nessa altura, associava-se quase exclusivamente ao prazer sexual. Hoje o prazer de que as pessoas tanto falam tem sobretudo que ver com usufruto.
    O que a revolução sexual veio reivindicar foi precisamente o prazer no sexo. Passou a ser um tema. As pessoas passaram a falar e a viver a sexualidade com maior à vontade. Isto é real. Hoje, mesmo nas patologias, raramente aparecem doentes por causa de problemas relacionados com sexualidade - e antigamente não era assim. Mas devo dizer que, apesar de haver um certo exagero nessa necessidade de procura de prazer, acho que em relação ao tempo em que comecei a exercer é uma reação bastante benéfica.
    Porquê? Era bem pior quando procurávamos o sacrifício e tudo girava em torno da culpa. A grande transformação nas sociedades ocidentais foi a de termos passado de uma sociedade dominada pela culpa para uma sociedade baseada no sucesso.
    E como é que isso se traduz nas nossas vidas? Temos três emoções inibitórias: medo, culpa e vergonha. Sou ainda do tempo em que as depressões na adolescência tinham, quase sempre, origem na culpabilidade. Hoje as depressões estão associadas a questões que se relacionam com sucesso e competência. O que nos move agora é o êxito e o medo de falhar. Nas sociedades de sucesso, a vergonha substituiu a culpa.
    "Não me perguntam se tive prazer, mas se tive êxito"


    Pode-se então dizer que o prazer também se associa ao êxito na medida em que é uma recompensa? É um pouco diferente. Na realização do êxito há uma determinada fasquia que obriga a sermos bons. Neste sentido há uma grande desvalorização do prazer. Quando dou uma conferência não me perguntam se tive prazer em realizá-la. Perguntam-me se tive êxito. Mas ainda a propósito destas questões relacionadas com as sociedades de consumo e do prazer: penso que hoje há uma tendência para a procura dos prazeres imediatos e uma certa dificuldade em acertar com o tempo de espera.
    Tudo tem de ser 'aqui e agora'? A tal incapacidade de aguentar a frustração? Dificuldade de tolerar a frustração, talvez. Mas neste ponto, tenho uma opinião um pouco diferente da maior parte dos autores.
    Qual é? Há toda uma teoria muito aceite que defende que é preciso introduzir no universo infantil a frustração, para que as crianças se habituem a tolerá-la. Não concordo. A frustração é sempre negativa, não se deve procurá-la. O que se deve introduzir é a capacidade de aumentar o tempo de espera. É uma nuance em relação à ideia de frustração, mas é uma nuance importante.
    O que é a frustração? A maior parte das vezes confunde-se frustração com privação. Privação é ter sede e não ter água para beber, frustração é ter uma garrafa com água e não poder bebê-la. A frustração é muito mais traumática.
    Mas quem nos diz que é preciso ter tolerância à frustração são os terapeutas. E a maioria pensa mesmo assim. Também dizem que é preciso estabelecer limites - e também não concordo. O necessário é ensinar que a realidade tem limites, o que é uma coisa diferente. Há um autor americano, que conheço pessoalmente e que aprecio, o Brazelton, que diz que o bebé precisa de amor e disciplina. Não estou nada de acordo com isso da disciplina. As crianças precisam de ter um ambiente disciplinado e organizado, o que não é exatamente o mesmo.
    Quando se entra num processo de análise procuramos saber o que sentimos ou quem somos? A maioria das vezes o que aparece à superfície é o que se sente. Mas depois começam a surgir os problemas relacionados com as questões identitárias. Muitas vezes as coisas acontecem ao contrário. Há muitíssimos doentes com fortes sintomas de inferioridade que aparecem com supercompensações de superioridade. De uma maneira geral as pessoas exibem o que não têm ou pelo menos julgam que não têm.
    "Também na psicanálise, tudo deve ser baseado em provas"


    Do ponto de vista da psicanálise o que é inato em nós? Há coisas genéticas e determinantes. Por exemplo, as questões do bem-estar e do prazer têm uma tradução neurológica no sistema cerebral. As pessoas mais ligadas ao prazer imediato funcionam mais no sistema límbico, que é uma parte do córtex mais antigo. As mais focadas na ideia do bem-estar e capacidade de espera, funcionam sobretudo no córtex frontal. A maioria dos nossos genes determina tendências que se desenvolvem, ou não, de acordo com o que se encontra no meio ambiente
    O que é físico e emocional vai-se desenhando no nosso cérebro, estamos sempre em rede? Tudo está ligado e desenvolve-se nesta articulação. As hormonas determinam o nosso comportamento, mas o nosso comportamento também determina a taxa hormonal que vamos acumulando. Por exemplo, por volta do terceiro mês de uma criança do sexo masculino processa-se um aumento grande de testosterona que determina aquilo a que chamamos o cérebro sexual. Se nesta fase, o bebé macho for tratado como uma rapariga, a taxa de testosterona baixa.
    Um século depois de Freud, qual é o modelo de psicanálise que hoje se pratica? Varia muito. A maioria dos psicanalistas continua a praticar o modelo clássico, são bastante ortodoxos. Mas há um grupo mais contemporâneo, e bastante mais pequeno, que pensa a psicanálise de outra maneira e ao qual eu pertenço.
    E como a pensa? Como em qualquer ciência, tudo deve ser baseado em provas. Portanto as teorias que existem são provisórias ou falsas. Como em qualquer mistério científico, o que procuramos são as causas e encontrar solução para essas causas. A base clínica é a observação.
    Mas a matéria que compõe o nosso sentir e o nosso pensar não pode ser observada em laboratório. Pois não.
    Com que ferramentas trabalha? A realidade é o próprio doente, trabalho com aquilo que sente. Na psicanálise clássica, avançava-se com toda uma teoria que comprovasse os sintomas. Agora, há um novo paradigma, em que se entende que o processo de psicanálise é um processo que induz mudança. Este movimento tem origem num grupo de psicanalistas de Boston, com o qual eu me identifico. Baseia-se na ideia de que um indivíduo, perante as vivências que teve - não só na infância, mas também na adolescência -, adquiriu uma determinada personalidade ou um determinado estilo de relação menos saudável e menos produtivo para si. O processo de análise consiste em ir interpretando este estilo no sentido de resolver e de estabelecer uma relação mais saudável, de forma a que possa traduzir o que se passa no consultório para a sua vida real.
    Como é que decorre o processo terapêutico? É o mesmo de sempre. Decorre a partir da conversa entre analista e paciente. A forma de conduzir é que é diferente. Em vez de termos na cabeça uma teoria que aplicamos, procuramos observar o que se passa com aquele paciente, vamos interpretando e construindo hipóteses em conjunto. Para mim, a questão fundamental é que uma pessoa seja capaz de se autoanalisar e que acabe a análise com uma capacidade de reflexão sobre si próprio maior do que a tinha.
    Conseguir devolver essas ferramentas é o maior sucesso de uma terapia. E se há um fracasso? Como lida com os seus insucessos? Mal, como todos nós...
    Com culpa? (Risos) É sempre desagradável. O pior que pode acontecer, e aconteceu-me um pouco marginalmente, é haver um paciente que se suicida. Tive um paciente com um diagnóstico de esquizofrenia. Tratei este homem durante 15 anos. Ao princípio uma vez por semana, no final já só o via de seis em seis meses. Dei-lhe alta. Precocemente. Passado um ano suicidou-se.
    "Quando percebo 5 por cento do que se passa, já fico contente"





    Esquizofrenia e bipolaridade não são doenças irreversíveis? Podem-se curar sem medicar? Depende. São doenças mais graves. Mas a esquizofrenia é um espectro. Há casos mais simples e capazes de ser tratados com relativo sucesso. É preciso que se apanhem muito cedo. Cerca de 75% dos sintomas de esquizofrenia começam na adolescência.
    Como se revelam? Num diagnóstico de esgotamento. O indivíduo que deixou de estudar porque a namorada o deixou... Mas se for tratado nessa altura a maior parte das vezes passa a sua vida sem ter nada.
    E a bipolaridade, de que agora tanto se fala? É um exagero de diagnóstico. Há naturezas mais alegres ou mais tristes e agora qualquer pessoa é logo considerada bipolar. Aqui há tempos estava numa reunião de apresentação de médicos e estava a contar umas histórias e umas anedotas e alguém me dizia que eu estava sempre bem disposto. Respondi: "Olhe, tive muita sorte porque na minha infância não havia pedopsiquiatras. Senão teriam diagnosticado uma síndroma de deficiência de atenção ou hiperatividade. Em adulto jovem, já fui eu que não deixei o psiquiatra ver-me. Senão ter-me-ia diagnosticado uma coisa bipolar e hoje estava completamente lixado". (Risos). Estava a caricaturar, mas é mais ou menos assim.
    Acontece-lhe não ter respostas? Há tempos, num congresso, perguntavam-me se tinha dúvidas. Respondi que quando percebo cinco por cento do que se passa já fico muito contente. Há uns anos um paciente, que por acaso era psicólogo, numa sessão em que estive particularmente calado disse-me: "Hoje está muito calado, deve ter pensado uma série de coisas sobre mim e não disse nada. Porque o doutor sabe mais de mim do que eu". Respondi-lhe: "Tem a certeza de que é psicólogo? Acha que alguém pode saber mais sobre si do que você próprio?". Chegou-se a este absurdo.
    Recorre-se em excesso às terapias? E aos médicos também.
    É um pânico com a ideia do sofrimento? Muitas vezes é. Somos o país da União Europeia que mais consome psicotrópicos. Os médicos e os psiquiatras receitam a torto e a direito.
    Receita? Raramente.
    Os dados que temos sobre a depressão são alarmantes. Revelam-nos que será a grande doença do século XXI. É mesmo assim? É.
    O que é que isto nos diz sobre a forma como vivemos? Várias coisas. Mas também é preciso dizer que esses dados aparecem porque hoje fazemos diagnósticos mais corretos e mais precisos. É verdade que muitas vezes também se abusa, há um excesso de diagnóstico e um excesso de tratamento. Em relação à sua pergunta, posso dizer que nas sociedades atuais - isto é duvidoso mas mais consensual - um dos fatores de depressão tem que ver com o facto de as relações entre pais e filhos se terem tornado mais frágeis, devido ao modo como vivemos. Outro aspeto é o isolamento. Ao nível dos laços sociais, e talvez esses sejam os mais importantes, as pessoas são menos solidárias e vivem em excessiva competição. Não mata mas mói. As pessoas sentem-se menos amadas e mais desamparadas.
    "O abandono é a grande causa da depressão"


    Desamparo, outra expressão muito usada pelos terapeutas. Em que difere de abandono? Desamparo é abandono físico. O mais grave é o abandono afetivo. "A minha mãe está presente, mas está a fazer o doutoramento, tem um novo amigo, etc., e não me liga a ponta de um corno...". O abandono é a grande causa de depressão, e morde muito mais do que o desamparo.
    Do ponto de vista da psicologia, a infância continua a ser o território onde tudo acontece? A saúde mental constrói-se na infância. Os fatores posteriores são menos importantes. Uma criança teve perdas de afetos na infância, fez uma depressão infantil que pode ter passado despercebida, estará mais fragilizada na idade adulta e poderá deprimir facilmente. Se teve uma infância sólida aguentará bem as perdas afetivas.
    Há qualquer coisa de assustador nessa ideia de que os alicerces se constroem todos ali e se corre mal é irremediável. Não é irremediável. Há um outro período importante, ao qual durante muito tempo não se deu grande significado, mas ao qual hoje já damos, que é a adolescência. Costumo dizer que na adolescência tudo se pode perder, mas tudo se pode ganhar. A maior parte das vezes, com tratamentos curtos, ou mesmo sem tratamento, consegue-se dar um salto.
    Quando começou a interessar-se pela psicanálise? É difícil responder-lhe. Quando fiz o curso de medicina todos os professores achavam que tinha muito jeito manual, o que é verdade, e encaminharam-me para a cirurgia. Ainda fiz cirurgia geral, depois cardíaca, mas não me interessou muito. Eu tinha outras coisas. Durante o liceu comecei a escrever, gostava muito de filosofia, lia muito... Tudo isto levou-me para a psiquiatra. Mas a minha escolha também teve que ver com outro fator. Na altura abriu um lugar para psiquiatria no hospital do Porto e eu queria ganhar um salário para poder casar.
    Uma opção pragmática? Exatamente. Nesse lado saio ao meu pai.
    A imagem inicial que tinha sobre a sua família alterou-se muito depois do seu processo de análise? Tornou-se mais clara. Sobretudo em relação à minha mãe, que era a personalidade mais complicada. Com ela, tinha uma certa raiva. Era profundamente beata, e tivemos grandes conflitos por causa disso. Mas, simultaneamente, também era muito histérica e portanto havia uma sexualidade sempre presente. Quando fiz a minha análise percebi que a história de infância dela tinha sido complicada e que naquela cabeça havia uma grande dose de loucura. Isso levou-me a compreendê-la melhor. É muito importante saber aceitar. Digo muitas vezes aos analistas que formo que o pior defeito que podem ter é personalidades narcísicas e estar mais concentrados em si do que nos outros.
    É fundamental haver generosidade sobre o outro? É o mais importante.
    A si nada o choca? Aparentemente não. Mas há coisas que tenho muita dificuldade em perceber. Uma das dificuldades de tratar psicóticos é essa. Um esquizofrénico tem uma perturbação do pensamento bastante diferente da comum das pessoas.
    O que aprendeu sobre a condição humana? Da minha experiência podia dizer que há uma coisa muito desagradável sobre a condição humana: somos uns animais muito agressivos. Mas também penso que somos animais extremamente solidários. Se formos capazes de fazer sobressair essa parte nas pessoas, conseguimos fazer coisas úteis uns pelos outros. A maior parte das vezes essa agressividade não é nem inata nem espontânea. É reativa e revela muita dor e sofrimento. Todas as pessoas têm lados positivos e muitas vezes não o sabem encontrar e nós também temos dificuldade em os desenvolver. É disso que temos de ir à procura. Na técnica psicanalítica que pratico e que ensino é que nunca ando atrás do que as pessoas têm de negativo. Procuro o que as pessoas têm de mais saudável.
    Qual é a palavra mais adequada para aquilo que faz? Os médicos costumam dizer que não tratam doenças, tratam doentes. Digo que nós, os psicanalistas, vamos mais longe, conversamos com as pessoas. Ajudamo-las a conhecerem-se um pouco melhor para encontrarem o seu caminho.

    Na sociedade atual a vergonha substituiu a culpa - Expresso.pt

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      #3
      Talvez tivesse passado despercebido:



      Outra:

      Psicanalista António Coimbra de Matos foi galardoado com o prémio – Distinguished Psychoanalytic Educator Award 2012 | :: Cogitando ::

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        #4
        Ainda consegui ver um bocado. É um homem deveras interessante. A entrevista foi de encontro à ideia que já tinha dele.

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          #5
          Originalmente Colocado por Oktober Ver Post
          Ainda consegui ver um bocado. É um homem deveras interessante. A entrevista foi de encontro à ideia que já tinha dele.
          Assim que estiver disponivel partilharei o video.

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            #6
            amanhã vai dar a repetição perto das 2 da manhã na rtp2, não sei é se cortarão algumas partes.
            também achei uma personalidade interessante

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              #7
              Não consigo suportar é o snobismo insinuante da Paula Moura Pinheiro. Nem isso, nem a mania que ela tem de, para mostrar que sabe, pôr-se a fazer analogias infantis sobre o tema.
              E no caso de Coimbra de Matos isso é perfeitamente desnecessario, dada a simplicidade do discurso dele, mas sobretudo dos exemplos que dá para explicar algo.

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                #8
                muito bom nuno! Este homem sempre foi um outsider muito interessante na psicanálise. Tive o privilégio de o ouvir algumas vezes em congressos e prende mesmo a plateia. arranja ai o link! abraço

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                  #9
                  Originalmente Colocado por Oktober Ver Post
                  Ainda consegui ver um bocado. É um homem deveras interessante. A entrevista foi de encontro à ideia que já tinha dele.
                  Também raramente vejo o Câmara Clara, mas como tinha de trabalhar deixei a TV ligada e achei o homem muito interessante, e é como dizes a Paula ás vezes estica-se para a simplicidade.

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                    #10
                    CÂMARA CLARA de 10 Jun 2012 - RTP Play - RTP

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