Um vómito moral.
Lê-se e não se acredita. O ano passado, a jornalista da TVI Marta Dhanis tomou a iniciativa de escrever a Renato Seabra, o homicida de Carlos Castro que se encontra a cumprir 25 anos de pena de prisão numa cadeia dos Estados Unidos. A primeira carta que recebeu de Seabra era lacónica e de poucas palavras, um pouco tímida até. Mas, aos poucos, a jornalista conseguiu ir conquistando a confiança e a intimidade do recluso. Poucos dias depois, em Junho de 2013, Renato Seabra enviava uma nova missiva, onde contava como se sentia ali, na prisão. O Correio da Manhã, com toda a tranquilidade e à largura de página inteira, reproduz uma carta de Renato Seabra para Marta Dhanis, escrita na prisão, na sua revista Domingo do passado dia 18. Na peça jornalística, assinada por Leonardo Ralha, chega-se a fazer humor com os erros de ortografia das cartas de Renato Seabra. Nessa revista do Correio da Manhã, aliás, transcrevem-se excertos e publicam-se fotografias doutras cartas de Seabra, com todo o desplante e a maior naturalidade do mundo. Sem o mínimo pudor ou escrúpulo. Cartas que foram escritas para um destinatário preciso, que não foram redigidas para saírem num jornal ou serem publicitadas. Cartas pessoais. Pior ainda: aproveitando este material tão íntimo, tão privado, escrito por um condenado a 25 anos de cadeia, Marta Dhanis publicou um livro. A € 11,70 a unidade, O Caso Renato Seabra: Por Detrás das Cortinas. Com a chancela da Chiado Editora, vai ser lançado já no próximo dia 22.
Acontece, porém, que o visado, ao que parece, não só não autorizou como não tem, ou não teve, conhecimento de que a sua correspondência iria ser publicada, em jornal e em livro. Paternalista e condescendente, permitindo-se falar em nome ou em lugar dos outros, Marta Dhanis adianta a opinião alheia: «Creio que não irá reagir de forma negativa [ao livro]. Acho que irá compreender» (declarações ao CM/Domingo, de 18.05.2014). Mas, então, por que motivo não lhe perguntou antes se Renato Seabra se importava, se «compreendia» que as cartas que escreveu fossem publicadas? Que um livro saísse? A família de Renato Seabra, pelos vistos, importou-se – e muito. O seu cunhado, porta-voz da família, já veio afirmar que Marta Dhanis se aproveitou da fragilidade do recluso para «ganhar dinheiro» à sua custa (aqui).
É aqui que bate o ponto. Não se trata de publicar correspondência de pessoas já falecidas, incapacitadas ou impossibilitadas de consentir na revelação da sua intimidade. Marta Dhanis teve a possibilidade de obter a autorização do visado para a publicação destas cartas – ou, no mínimo, de lhe dar prévio conhecimento do livro que estava a preparar. Será que o fez? Parece que não. Mais: corresponde-se ao longo de meses com Renato Seabra, decide escrever um livro sobre ele e o seu caso e não lhe manda sequer uma carta a avisar?
O Diário de Notícias, «jornal de referência», também não teve pudor algum em publicar trechos das cartas de Seabra, dando notícia do livro que a colega-jornalista vai lançar dentro de dias. «Renato Seabra conta que chora na prisão», é o título pornográfico do centenário diário. Por todo o lado é notícia a saída do livro da colega d'ofício Marta, desde a Lux à Nova Gente, passando pelo Destak. O Correio da Manhã e, pasme-se, o Diário de Notícias alinham por este diapasão tabloide. A classe jornalística, tão lesta e impiedosa a julgar os outros, não se questiona, não se interroga sequer sobre a legitimidade ética deste procedimento?
Há quem diga aqui, claramente à defesa, que o livro não se baseia nas cartas de Renato Seabra, que a alusão às missivas ocupa apenas duas páginas da obra. Pior ainda. As cartas surgiram publicadas – e até fotografadas – na imprensa de grande circulação. Tinham uma destinatária, a autora do livro. É mais do que legítimo supor que foi ela que as forneceu aos colegas, no âmbito da operação comercial de lançamento do seu livro. E, pelos vistos, as cartas nem sequer interessam para a narrativa de Marta Dhanis. Só importam para quê, então? Para apimentar a promoção mercantil do livro? Sim, porque são publicadas agora, em vésperas de lançamento? Dê-se as voltas que se der, a verdade é só uma: Marta Dhanis tomou a iniciativa de escrever a Renato Seabra, este respondeu-lhe a ela, só a ela, e esta publica e publicita a correspondência recebida. Insiste-se: ao que tudo indica, sem pedir autorização, ou sequer dar conhecimento, a quem nela confiou os seus pensamentos mais íntimos, pessoais e intransmissíveis. E mesmo, por mera hipótese, que existisse ou exista autorização para publicitar as cartas da prisão, não deveria a autora do livro ter informado o biografado de que escreveu um livro sobre a morte de Carlos Castro?
Por mais mal que tenha feito, Renato Seabra, estamos em crer, ainda é um ser humano. Sem liberdade, mas com dignidade. Não, não merecia isto. Um vómito moral.
http://www.malomil.blogspot.pt/2014/05/um-vomito-moral.html
Lê-se e não se acredita. O ano passado, a jornalista da TVI Marta Dhanis tomou a iniciativa de escrever a Renato Seabra, o homicida de Carlos Castro que se encontra a cumprir 25 anos de pena de prisão numa cadeia dos Estados Unidos. A primeira carta que recebeu de Seabra era lacónica e de poucas palavras, um pouco tímida até. Mas, aos poucos, a jornalista conseguiu ir conquistando a confiança e a intimidade do recluso. Poucos dias depois, em Junho de 2013, Renato Seabra enviava uma nova missiva, onde contava como se sentia ali, na prisão. O Correio da Manhã, com toda a tranquilidade e à largura de página inteira, reproduz uma carta de Renato Seabra para Marta Dhanis, escrita na prisão, na sua revista Domingo do passado dia 18. Na peça jornalística, assinada por Leonardo Ralha, chega-se a fazer humor com os erros de ortografia das cartas de Renato Seabra. Nessa revista do Correio da Manhã, aliás, transcrevem-se excertos e publicam-se fotografias doutras cartas de Seabra, com todo o desplante e a maior naturalidade do mundo. Sem o mínimo pudor ou escrúpulo. Cartas que foram escritas para um destinatário preciso, que não foram redigidas para saírem num jornal ou serem publicitadas. Cartas pessoais. Pior ainda: aproveitando este material tão íntimo, tão privado, escrito por um condenado a 25 anos de cadeia, Marta Dhanis publicou um livro. A € 11,70 a unidade, O Caso Renato Seabra: Por Detrás das Cortinas. Com a chancela da Chiado Editora, vai ser lançado já no próximo dia 22.
Acontece, porém, que o visado, ao que parece, não só não autorizou como não tem, ou não teve, conhecimento de que a sua correspondência iria ser publicada, em jornal e em livro. Paternalista e condescendente, permitindo-se falar em nome ou em lugar dos outros, Marta Dhanis adianta a opinião alheia: «Creio que não irá reagir de forma negativa [ao livro]. Acho que irá compreender» (declarações ao CM/Domingo, de 18.05.2014). Mas, então, por que motivo não lhe perguntou antes se Renato Seabra se importava, se «compreendia» que as cartas que escreveu fossem publicadas? Que um livro saísse? A família de Renato Seabra, pelos vistos, importou-se – e muito. O seu cunhado, porta-voz da família, já veio afirmar que Marta Dhanis se aproveitou da fragilidade do recluso para «ganhar dinheiro» à sua custa (aqui).
É aqui que bate o ponto. Não se trata de publicar correspondência de pessoas já falecidas, incapacitadas ou impossibilitadas de consentir na revelação da sua intimidade. Marta Dhanis teve a possibilidade de obter a autorização do visado para a publicação destas cartas – ou, no mínimo, de lhe dar prévio conhecimento do livro que estava a preparar. Será que o fez? Parece que não. Mais: corresponde-se ao longo de meses com Renato Seabra, decide escrever um livro sobre ele e o seu caso e não lhe manda sequer uma carta a avisar?
O Diário de Notícias, «jornal de referência», também não teve pudor algum em publicar trechos das cartas de Seabra, dando notícia do livro que a colega-jornalista vai lançar dentro de dias. «Renato Seabra conta que chora na prisão», é o título pornográfico do centenário diário. Por todo o lado é notícia a saída do livro da colega d'ofício Marta, desde a Lux à Nova Gente, passando pelo Destak. O Correio da Manhã e, pasme-se, o Diário de Notícias alinham por este diapasão tabloide. A classe jornalística, tão lesta e impiedosa a julgar os outros, não se questiona, não se interroga sequer sobre a legitimidade ética deste procedimento?
Há quem diga aqui, claramente à defesa, que o livro não se baseia nas cartas de Renato Seabra, que a alusão às missivas ocupa apenas duas páginas da obra. Pior ainda. As cartas surgiram publicadas – e até fotografadas – na imprensa de grande circulação. Tinham uma destinatária, a autora do livro. É mais do que legítimo supor que foi ela que as forneceu aos colegas, no âmbito da operação comercial de lançamento do seu livro. E, pelos vistos, as cartas nem sequer interessam para a narrativa de Marta Dhanis. Só importam para quê, então? Para apimentar a promoção mercantil do livro? Sim, porque são publicadas agora, em vésperas de lançamento? Dê-se as voltas que se der, a verdade é só uma: Marta Dhanis tomou a iniciativa de escrever a Renato Seabra, este respondeu-lhe a ela, só a ela, e esta publica e publicita a correspondência recebida. Insiste-se: ao que tudo indica, sem pedir autorização, ou sequer dar conhecimento, a quem nela confiou os seus pensamentos mais íntimos, pessoais e intransmissíveis. E mesmo, por mera hipótese, que existisse ou exista autorização para publicitar as cartas da prisão, não deveria a autora do livro ter informado o biografado de que escreveu um livro sobre a morte de Carlos Castro?
Por mais mal que tenha feito, Renato Seabra, estamos em crer, ainda é um ser humano. Sem liberdade, mas com dignidade. Não, não merecia isto. Um vómito moral.
http://www.malomil.blogspot.pt/2014/05/um-vomito-moral.html
Comentário