O fim do mundo. Imagine que, numa ilha perdida, a milhares de quilómetros de tudo, existe um trilho que, ao fim de quase dois quilómetros de lentos meandros, termina numa casota de 50 metros quadrados. Não há saneamento básico, mas o ar e as reservas de água e de alimentos (insípidos mas nutritivos) e de medicamentos são inesgotáveis, o sistema de telecomunicações com o resto do mundo funciona e a localização da ilha é conhecida. Tirando algum imprevisto de última hora, quem lá está sabe que tem o regresso à civilização garantido mais ou menos no Natal. O décor poderá ser inquietante para alguns, mas fará sonhar quem não receia o isolamento e procura umas semanas de paz e sossego, sozinho ou na companhia de amigos ou familiares.
Agora, transponha-se esta mesma cena para um compartimento situado debaixo da terra, a 700 metros de profundidade (distância equivalente a sete quarteirões), no fundo de uma mina de ouro e cobre cavada na rocha perto da cidade de Copiapó, planalto de Atacama, Norte do Chile. A casa é um bunker de betão soterrado; o trilho, um túnel em espiral que deveria ter permitido que os ocupantes da casa regressassem à superfície se não tivesse sido bloqueado por uma gigantesca derrocada. Reinam temperaturas e humidade tropicais (mais de 30 graus centígrados e uma humidade relativa superior a 90 por cento), a atmosfera é poeirenta apesar do sistema de ventilação e não há sol nem céu. Enterrados vivos lá dentro estão mais de três dezenas de homens que não escolheram este destino. O retiro transformou-se num inferno sobrelotado.
É nestas condições que vão ter de viver, durante os próximos quatro meses, os 33 mineiros que, no passado dia 5 de Agosto, ficaram soterrados na mina de São José, a cerca de 800 quilómetros de Santiago do Chile, enquanto esperam que uma escavadora gigante perfure um poço de 66 centímetros de largura para os libertar.
Missão impossível
Já passaram por momentos muito piores estes homens entre os 19 e os 56 anos: nos primeiros 17 dias de cativeiro, antes de serem localizados pelas equipas de resgate, resistiram à fome e ao desespero sem ajuda nem contacto com o exterior, no habitáculo de emergência reforçado no qual conseguiram refugiar-se quando tudo desabou.
Fizeram algo de quase impossível: sobreviveram com reservas de comida para apenas dois dias, restringindo-se a ingerir uma ração de apenas duas colheres de atum, um gole de leite e uma bolacha, dia sim, dia não.
Para não mergulharem na escuridão total, carregaram as lanternas dos capacetes com as baterias das máquinas da mina; para ter água furaram um acesso a um lençol freático próximo; e, para manter um mínimo de condições de higiene, cavaram uma latrina a alguma distância do refúgio, numa pequena oficina acessível pelos túneis. Tendo ao mesmo tempo o cuidado de não poluir o ar mais do que o estritamente necessário com os gases de escape das máquinas.
Eles sabiam que, lá em cima, estavam a tentar localizá-los, porque chegaram a ouvir o ruído da furadora bem perto durante as tentativas falhadas de abrir um orifício de comunicação com o refúgio. Aguardaram pacientemente o sucesso da operação, que aconteceu no passado domingo, e ataram então um papel à ponta da furadora onde escreveram sete palavras a lápis vermelho: "Estamos bien en el refugio los 33."
Poucos dias depois, os mineiros começaram a receber, pelo primeiro furo de 12 centímetros de largura que os ligara novamente à vida exterior, tubos de plástico de metro e meio de comprimento, ou palomas, contendo o necessário para uma primeira fase de reidratação e de recuperação do seu sistema digestivo (estima-se que tenham emagrecido dez quilos). Também foram enviadas garrafas de oxigénio e estabelecida uma linha de comunicação.
Durante os próximos meses, este e mais dois furos idênticos - verdadeiros cordões umbilicais - vão servir para lhes enviar alimentos, medicamentos, ar, roupa, cartas de e para os familiares, jogos, revistas, etc., e ainda para comunicar por vídeo e áudio com eles. O diário chileno El Mercurio noticiava aliás quarta-feira que o tempo que demoram as palomas a descer e tornar a subir foi reduzido de duas horas para 30 minutos. Mas apesar destas melhorias, grandes questões subsistem quando à manutenção da saúde física e mental dos mineiros durante um período tão longo. As primeiras imagens de vídeo vindas do refúgio, ontem divulgadas pelas televisões, mostram rostos surpreendentemente felizes e calmos. Mas pouco revelam - e pouco se sabe - do que pode vir a sentir e fazer uma pessoa nestas circunstâncias quando elas se prolongam para além do humanamente suportável. Várias entidades nacionais e estrangeiras especializadas na sobrevivência em condições extremas, entre as quais a agência espacial norte-americana NASA, já estão a fornecer ou irão fornecer em breve toda a ajuda necessária.
Regras não negociáveis
Anteontem, Jorge Díaz, director da Associação Chilena de Segurança de Copiapó e responsável pela equipa médica de resgate, explicou ao El Mercurio as regras "não negociáveis" de organização da vida dos 33 mineiros. Antes de mais, foi estabelecida uma "cadeia de comando", com três líderes espontaneamente escolhidos pelo grupo. Um líder principal (que era o chefe de turno na altura da derrocada) e dois subalternos: um com experiência de enfermagem, que ficará encarregado dos aspectos médicos; e outro que dará "apoio espiritual" aos seus companheiros.
Também é essencial definir rotinas quotidianas, com períodos de sono, trabalho, refeições, lazer e repouso. A alternância do dia e da noite será simulada com lâmpadas de intensidade regulável.
O uso de veículos e a deambulação pela mina serão proibidos para evitar acidentes: "Mesmo uma ferida ligeira pode provocar graves problemas", diz Díaz.
O espaço habitável deverá ficar subdividido em três sectores: dormitório, sala comum (para refeições e actividades de lazer) e sanitários; os alimentos serão ricos em proteínas mas as calorias serão controladas para garantir que os homens consigam sair pelo poço de resgate. A actividade física, também obrigatória, deverá servir para evitar a atrofia muscular e reduzir a circunferência da cintura.
Lê-se ainda no diário chileno que foram constituídos três grupos - um responsável pela recepção e envio das palomas, um pela situação sanitária e a higiene do túnel e o último pela segurança. O objectivo é estabelecer turnos que permitam envolver os mineiros em todas as fases da operação de resgate, outro factor-chave para manter a coesão e o estado anímico do grupo. Contudo, salienta Díaz, "é muito provável e recomendável que eles venham a sofrer quebras emocionais. Têm de libertar as emoções".
O estado psicológico é outra grande preocupação dos especialistas e a comunicação por carta com as famílias é considerada essencial para os mineiros. Também serão administrados antidepressivos, se necessário, e os mineiros deverão ter aconselhamento psicológico ao longo da sua estadia subterrânea.
E depois há o "depois" - quando, se tudo correr bem, os 33 homens regressarem ao mundo sujos e magros, mas sãos e salvos. Parafraseando Tony Oppegard, ex-responsável dos serviços de segurança e saúde da administração norte-americana das minas, o New York Times escreve: "Ninguém deve esperar que os mineiros saiam de lá de boa saúde mental."
Agora, transponha-se esta mesma cena para um compartimento situado debaixo da terra, a 700 metros de profundidade (distância equivalente a sete quarteirões), no fundo de uma mina de ouro e cobre cavada na rocha perto da cidade de Copiapó, planalto de Atacama, Norte do Chile. A casa é um bunker de betão soterrado; o trilho, um túnel em espiral que deveria ter permitido que os ocupantes da casa regressassem à superfície se não tivesse sido bloqueado por uma gigantesca derrocada. Reinam temperaturas e humidade tropicais (mais de 30 graus centígrados e uma humidade relativa superior a 90 por cento), a atmosfera é poeirenta apesar do sistema de ventilação e não há sol nem céu. Enterrados vivos lá dentro estão mais de três dezenas de homens que não escolheram este destino. O retiro transformou-se num inferno sobrelotado.
É nestas condições que vão ter de viver, durante os próximos quatro meses, os 33 mineiros que, no passado dia 5 de Agosto, ficaram soterrados na mina de São José, a cerca de 800 quilómetros de Santiago do Chile, enquanto esperam que uma escavadora gigante perfure um poço de 66 centímetros de largura para os libertar.
Missão impossível
Já passaram por momentos muito piores estes homens entre os 19 e os 56 anos: nos primeiros 17 dias de cativeiro, antes de serem localizados pelas equipas de resgate, resistiram à fome e ao desespero sem ajuda nem contacto com o exterior, no habitáculo de emergência reforçado no qual conseguiram refugiar-se quando tudo desabou.
Fizeram algo de quase impossível: sobreviveram com reservas de comida para apenas dois dias, restringindo-se a ingerir uma ração de apenas duas colheres de atum, um gole de leite e uma bolacha, dia sim, dia não.
Para não mergulharem na escuridão total, carregaram as lanternas dos capacetes com as baterias das máquinas da mina; para ter água furaram um acesso a um lençol freático próximo; e, para manter um mínimo de condições de higiene, cavaram uma latrina a alguma distância do refúgio, numa pequena oficina acessível pelos túneis. Tendo ao mesmo tempo o cuidado de não poluir o ar mais do que o estritamente necessário com os gases de escape das máquinas.
Eles sabiam que, lá em cima, estavam a tentar localizá-los, porque chegaram a ouvir o ruído da furadora bem perto durante as tentativas falhadas de abrir um orifício de comunicação com o refúgio. Aguardaram pacientemente o sucesso da operação, que aconteceu no passado domingo, e ataram então um papel à ponta da furadora onde escreveram sete palavras a lápis vermelho: "Estamos bien en el refugio los 33."
Poucos dias depois, os mineiros começaram a receber, pelo primeiro furo de 12 centímetros de largura que os ligara novamente à vida exterior, tubos de plástico de metro e meio de comprimento, ou palomas, contendo o necessário para uma primeira fase de reidratação e de recuperação do seu sistema digestivo (estima-se que tenham emagrecido dez quilos). Também foram enviadas garrafas de oxigénio e estabelecida uma linha de comunicação.
Durante os próximos meses, este e mais dois furos idênticos - verdadeiros cordões umbilicais - vão servir para lhes enviar alimentos, medicamentos, ar, roupa, cartas de e para os familiares, jogos, revistas, etc., e ainda para comunicar por vídeo e áudio com eles. O diário chileno El Mercurio noticiava aliás quarta-feira que o tempo que demoram as palomas a descer e tornar a subir foi reduzido de duas horas para 30 minutos. Mas apesar destas melhorias, grandes questões subsistem quando à manutenção da saúde física e mental dos mineiros durante um período tão longo. As primeiras imagens de vídeo vindas do refúgio, ontem divulgadas pelas televisões, mostram rostos surpreendentemente felizes e calmos. Mas pouco revelam - e pouco se sabe - do que pode vir a sentir e fazer uma pessoa nestas circunstâncias quando elas se prolongam para além do humanamente suportável. Várias entidades nacionais e estrangeiras especializadas na sobrevivência em condições extremas, entre as quais a agência espacial norte-americana NASA, já estão a fornecer ou irão fornecer em breve toda a ajuda necessária.
Regras não negociáveis
Anteontem, Jorge Díaz, director da Associação Chilena de Segurança de Copiapó e responsável pela equipa médica de resgate, explicou ao El Mercurio as regras "não negociáveis" de organização da vida dos 33 mineiros. Antes de mais, foi estabelecida uma "cadeia de comando", com três líderes espontaneamente escolhidos pelo grupo. Um líder principal (que era o chefe de turno na altura da derrocada) e dois subalternos: um com experiência de enfermagem, que ficará encarregado dos aspectos médicos; e outro que dará "apoio espiritual" aos seus companheiros.
Também é essencial definir rotinas quotidianas, com períodos de sono, trabalho, refeições, lazer e repouso. A alternância do dia e da noite será simulada com lâmpadas de intensidade regulável.
O uso de veículos e a deambulação pela mina serão proibidos para evitar acidentes: "Mesmo uma ferida ligeira pode provocar graves problemas", diz Díaz.
O espaço habitável deverá ficar subdividido em três sectores: dormitório, sala comum (para refeições e actividades de lazer) e sanitários; os alimentos serão ricos em proteínas mas as calorias serão controladas para garantir que os homens consigam sair pelo poço de resgate. A actividade física, também obrigatória, deverá servir para evitar a atrofia muscular e reduzir a circunferência da cintura.
Lê-se ainda no diário chileno que foram constituídos três grupos - um responsável pela recepção e envio das palomas, um pela situação sanitária e a higiene do túnel e o último pela segurança. O objectivo é estabelecer turnos que permitam envolver os mineiros em todas as fases da operação de resgate, outro factor-chave para manter a coesão e o estado anímico do grupo. Contudo, salienta Díaz, "é muito provável e recomendável que eles venham a sofrer quebras emocionais. Têm de libertar as emoções".
O estado psicológico é outra grande preocupação dos especialistas e a comunicação por carta com as famílias é considerada essencial para os mineiros. Também serão administrados antidepressivos, se necessário, e os mineiros deverão ter aconselhamento psicológico ao longo da sua estadia subterrânea.
E depois há o "depois" - quando, se tudo correr bem, os 33 homens regressarem ao mundo sujos e magros, mas sãos e salvos. Parafraseando Tony Oppegard, ex-responsável dos serviços de segurança e saúde da administração norte-americana das minas, o New York Times escreve: "Ninguém deve esperar que os mineiros saiam de lá de boa saúde mental."
Ontem foi divulgado um video por todo o mundo onde os mineiros demonstram estar com animo. Dizem que jogam dominó para passar o tempo e estão confiantes que vão passar o natal a casa, já que as previsões mais optimistas apontavam para cerca de 3 meses.
Video:
YouTube - TV Chilena divulga imagens de mineiros presos em mina no Chile
Quando forem libertados, o que espero que venha a acontecer o mais breve possível apesar de todas as condicionantes, terão ultrapassado um dos maiores testes físicos e mentais para o comum mortal. É complicado e até desesperante imaginar o quotidiano destes 33 homens.
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