Não há estatísticas exactas sobre a violência doméstica em Portugal. Algumas mulheres demoram anos a pedir ajuda e calcula-se que muitas mais nunca cheguem a fazê-lo. Em 2008, a PSP e a GNR registaram 27.144 queixas. Dessas, 9,2% diziam respeito a vítimas com cursos superiores. “Nas classes sociais mais altas as agressões também existem, embora numa percentagem mais reduzida”, diz à SÁBADO Carla Machado, professora da Universidade do Minho e coordenadora do estudo Enquadramento Cultural da Violência contra Mulheres e Crianças. Segundo o inquérito de 2005, 10% das mulheres mais favorecidas admitiram já ter sido alvo de algum tipo de agressão (contra 33% das classes mais baixas). As vítimas ocupam profissões de topo: são médicas, juízas, professoras universitárias e administradoras de empresas.
A família sempre soube que o marido de Antónia lhe batia. Eles viam-na com hematomas, feridas e braços ao peito, mas nunca fizeram nada. O escândalo de um divórcio seria, para todos, muito pior do que conviver com um casamento de fachada. Chegaram a levá-la, gravemente ferida, a uma clínica privada. Visitaram-na em coma. Continuaram a exigir-lhe silêncio. A mãe repetia: “As mulheres do Norte morrem de pé.”
O facto de a conduzirem a uma instituição de saúde privada garantia o sigilo, apesar de, por lei, os profissionais de saúde serem obrigados a denunciar estes crimes. As boas relações com os médicos permitiam que as agressões não ficassem registadas nas fichas clínicas. Oficialmente, os internamentos de Antónia eram resultado de crises depressivas. Essa discrição é o motivo pelo qual as mulheres da alta sociedade evitam hospitais públicos.
A tareia, soube depois, não foi só por não ter querido almoçar – foi também por ter exposto o marido à vergonha de os dois abandonarem a festa de casamento apenas três horas depois do início. Antónia tinha disfarçado a palidez extrema com maquilhagem, mas estava exausta por causa dos preparativos. A pressão era tanta que a primeira vez que se viu vestida de noiva desmaiou. Na véspera do casamento, fugiu de casa pelo telhado. Voltou para poupar os pais e os irmãos ao escândalo. Acreditou que aprenderia a viver com o marido. Enganou-se.
Em público, o marido de Antónia parecia um cavalheiro. Levava-a a viajar para os destinos mais luxuosos e gastava largos milhares de euros nas jóias que lhe oferecia à frente de toda a família. Em casa, os maus tratos continuavam. Não precisava de motivo para bater na mulher. Dependia do dia. Se ela falasse, era porque falava. Se estivesse calada, era porque estava calada. “E se ele bebesse uma reserva de Cabeça de Burro tinto [um dos seus vinhos de eleição] tornava--se ainda mais macabro”, diz à SÁBADO.
Havia semanas em que apanhava mais do que uma vez. “Batia-me com todo o tipo de objectos, apontava-me armas à cabeça. Todos os anos me partia um braço, uma perna ou qualquer outra coisa. Mordia-me muito em todo o corpo. Estive em coma e perdi a conta às hospitalizações. Ele tinha uma força doida.” Nos momentos em que a mulher estava menos frágil, tornava-se sádico. Às vezes, surpreendia-a deitada num sofá a ler. Vinha pé ante pé e, de repente, apertava-lhe o livro contra a cara para a asfixiar. Depois, libertava-a e perguntava: “Achavas que eu te ia matar? Nããão. Amo-te demasiado!”
A pior sova de todas foi a que levou quando estava grávida de 6 meses. “O meu ex-marido decidiu que queria matar o bebé.” Deu-lhe bofetadas, socos e um violento pontapé na barriga. “Voei um corredor inteiro, muito longo e largo, e aterrei em cima de um móvel. Comecei logo a perder sangue. Não me socorreu.”
Uma das empregadas alertou um familiar. Antónia entrou num grande hospital público com um descolamento quase total da placenta. O médico próximo que a assistiu não denunciou a situação e ela nunca lhe perdoou o silêncio. “Podia ter sido tudo diferente.”
Não há estatísticas exactas sobre a violência doméstica em Portugal. Algumas mulheres demoram anos a pedir ajuda e calcula-se que muitas mais nunca cheguem a fazê-lo. Em 2008, a PSP e a GNR registaram 27.144 queixas. Dessas, 9,2% diziam respeito a vítimas com cursos superiores. “Nas classes sociais mais altas as agressões também existem, embora numa percentagem mais reduzida”, diz à SÁBADO Carla Machado, professora da Universidade do Minho e coordenadora do estudo Enquadramento Cultural da Violência contra Mulheres e Crianças. Segundo o inquérito de 2005, 10% das mulheres mais favorecidas admitiram já ter sido alvo de algum tipo de agressão (contra 33% das classes mais baixas). As vítimas ocupam profissões de topo: são médicas, juízas, professoras universitárias e administradoras de empresas.
A família sempre soube que o marido de Antónia lhe batia. Eles viam-na com hematomas, feridas e braços ao peito, mas nunca fizeram nada. O escândalo de um divórcio seria, para todos, muito pior do que conviver com um casamento de fachada. Chegaram a levá-la, gravemente ferida, a uma clínica privada. Visitaram-na em coma. Continuaram a exigir-lhe silêncio. A mãe repetia: “As mulheres do Norte morrem de pé.”
O facto de a conduzirem a uma instituição de saúde privada garantia o sigilo, apesar de, por lei, os profissionais de saúde serem obrigados a denunciar estes crimes. As boas relações com os médicos permitiam que as agressões não ficassem registadas nas fichas clínicas. Oficialmente, os internamentos de Antónia eram resultado de crises depressivas. Essa discrição é o motivo pelo qual as mulheres da alta sociedade evitam hospitais públicos.
Passaram mais de 10 anos até que Antónia tivesse coragem para planear o divórcio. Sofreu as consequências. Por ter saído de casa, ainda hoje, alguns anos depois, está proibida de participar nos encontros de família aos domingos. No Natal, não tem lugar à mesa. “Acompanhei senhoras que foram afastadas destes rituais enquanto o agressor continua a ser acolhido”, diz Celina Manita, directora do Gabinete de Estudo e Apoio a Vítimas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP).
“Estas vítimas estão bastante mais isoladas do que as outras. As famílias fazem-nas sentir-se culpadas de se defenderem e protegerem”, explica Rosário Figueiredo, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Além disso, “aqui não há denúncias de vizinhos, como nos bairros”. Em muitos casos, as grandes dimensões das casas, só por si, bastam para que ninguém oiça o que se passa para lá das próprias paredes.
Sem saber, Antónia construiu o seu próprio bunker. Para reforçar o isolamento térmico e acústico, mandou fazer paredes à prova de som. Foi por isso que ninguém ouviu nada na noite em que levou uma facada num pulmão. Esteve toda a refeição a ouvir provocações sem responder. O marido enfureceu-se com o silêncio, levantou-se e encaminhou-se para a cozinha. Nesse instante, ela tremeu. Teve a certeza de que ele a ia atacar com uma das várias facas expostas na bancada de açougueiro que ela própria mandara construir.
Correu para a porta e agarrou numa faca para se defender. Ele empurrou-a contra a parede, imobilizou-a e encostou-lhe outra ao pescoço. “Agora fala, tem coragem!”, atiçou. Antónia sentia a lâmina tocar na pele, a provocar golpes. “Lembro-me da cara dele, dos olhos. Fiquei perdida. Não conseguia falar nem reagir. Não tive percepção da dor, mas quando vi sangue pensei: ‘É agora que te vou matar’”, diz à SÁBADO.
Levantou a mão mas ele foi mais rápido. Torceu-lhe o braço e cravou-lhe a faca no peito. Só teve dor quando a lâmina saiu. Desmaiou. Dessa vez, o marido levou-a à clínica numa carrinha Volvo. Foi operada pela primeira vez e, mais tarde, sujeita a nova intervenção, fora do País. Complicações provocadas pelo ferimento obrigaram-na a tirar parte do lobo inferior do pulmão direito.
As agressões tornaram-se cada vez mais violentas. “Tinha noção de que ele ia premeditar a minha morte.” A suspeita transformou-se em certeza depois de um grave desastre de automóvel. Um funcionário da oficina deixou-lhe o carro estacionado à porta do escritório. Antónia saiu à pressa para um compromisso. Tinha fama de guiar depressa. Nem sabe a que velocidade seguia quando perdeu um pneu. Despistou-se.
O estado de Antónia era grave, com fracturas múltiplas nas vértebras, esterno, costelas e membros. Esteve inconsciente, mas sabe que foi assistida por um inspector da Brigada de Minas e Armadilhas da Polícia Judiciária. Desconhece como ele foi lá parar. O marido apareceu pouco depois. Apesar da seriedade dos ferimentos, quis ser ele a transportá-la ao hospital.
Logo que ficou estável foi transferida para uma clínica, onde recuperou durante seis meses. Uma noite, recebeu fora de horas a visita do inspector da PJ que a ajudara no dia do acidente. Aconselhou-a a não deixar destruir o carro. Suspeitava de sabotagem.
De repente, pôs tudo em causa. Descobriu que havia vários seguros de vida em seu nome e, portanto, a sua morte renderia uma fortuna. Como não tinha acesso às contas bancárias – limitava-se a usar o American Express platina – não soube logo que, só pelo acidente, tinha recebido 700 mil euros. Para ela era claro: ou saía de casa ou morria.
Planeou tudo com frieza. Mal voltou ao trabalho, levantou uma laje do chão do escritório para esconder dinheiro. Em pouco mais de um mês juntou alguns milhares de euros em notas. Tornou-se dócil para o marido. Até que forjou uma viagem. Avisou-o de que ia estar fora uns dias, mas saiu preparada para voltar dali a nada. Queria surpreendê-lo num dos encontros íntimos que ele mantinha com outras mulheres na sua ausência. Entrou, viu e saiu. O medo de que ela provocasse um escândalo público foi suficiente para o deter. Ela já não voltou.
Estão divorciados desde 2002. Apesar da oposição de todos, apresentou centenas de queixas contra o marido – por maus tratos, falsificação de assinaturas e fraudes financeiras em que ele a envolveu. Nesta guerra, perdeu a guarda do filho. Nunca mais deixou de receber ameaças. No início do ano, dois homens atravessaram um carro à frente do dela. Deram-lhe uma sova com um bastão de picos e deixaram um recado do ex-marido: “Da próxima vez é até à morte.” A instituição que lhe dá apoio traçou-lhe um plano de segurança. Vive em parte incerta. Os processos judiciais ainda correm.
É muito raro um caso destes chegar a tribunal. “Em 22 anos de carreira, só tive um, de uma economista”, relata Joana Salinas, juíza-desembargadora do Tribunal da Relação do Porto e presidente da delegação de Matosinhos da Cruz Vermelha Portuguesa. Tudo por causa da vergonha. “Elas sentem o peso de não terem sido capazes de pôr fim à violência, apesar de serem mulheres com instrução e elevado nível financeiro”, acrescenta Celina Manita, da FPCEUP. Esse é, aliás, um dos factores que as distingue das outras vítimas.
Mas há outros pormenores que fazem a diferença. “Os agressores são elaborados”, diz Catarina Ribeiro. Sabem bater sem deixar marcas. “Evitam agredi-las no rosto e nas mãos. Usam toalhas molhadas e sabonetes dentro de meias”, descreve Celina Manita. Há quem recorra a listas telefónicas. Os músculos ficam arrasados e a pele quase intacta.
A tortura psicológica é mais eficaz. Humilham-nas, insultam-nas, convencem-nas de que controlam a polícia e os tribunais. Agridem-nas e pedem desculpa com classe. “Acompanhei um caso em que o abusador batia na mulher à frente dos filhos. Depois dizia-lhes que era tudo encenação: ele e a mãe estavam só a ensaiar uma peça de um dramaturgo famoso.”
Os dois primeiros anos que Mariana viveu com o marido foram felizes. Casou cedo e teve logo filhos. Para a alta burguesia do Norte, eram um casal modelo: ele empresário, ela administradora de uma empresa agrícola. O pior foi quando Mariana se negou a praticar sexo anal. A recusa valeu-lhe a primeira agressão física. Foi espancada até ceder. Ele prendia-a numa cadeira e dava-lhe sovas. Amarrava-a enquanto a violava.
Ninguém calculava o que acontecia a Mariana. O marido oferecia-lhe viagens, presentes e carros, para causar boa impressão junto da família. Um dia, ela ganhou coragem e ameaçou denunciá-lo. Mudou de quarto e acabou com quaisquer contactos físicos. Começaram os insultos. Chamava-lhe “feia”, “gorda” e “vaca”.
Acusava-a de ter amantes, dizia que ela estava louca. Quando ficou grávida do terceiro filho, convenceu-se de que ele tinha razão. O marido negou ser o pai da criança. E ela não se lembrava de ter ido para a cama com uma única pessoa. Procurou um psiquiatra.
Os técnicos que a acompanharam ajudaram-na a desvendar o mistério. Estranharam a ausência de problemas de sono numa situação de tanta ansiedade. Além disso, pareceu-lhes bizarro que, apesar da crise, ele continuasse a preparar-lhe todos os dias uma bebida à noite.
Desconfiaram que ele a sedava e sugeriram-lhe que passasse a deixar o copo intacto. Por precaução, elaboraram-lhe um plano de segurança. Deveria deitar-se com uma roupa por baixo do pijama, ter documentos, telemóvel e chaves do carro à mão para o caso de precisar de fugir.
Começou logo a ter mais dificuldade para adormecer. Estava acordada na noite em que ouviu o marido entrar no seu quarto. Fingiu não dar por nada. Esperou e apenas reagiu no momento em que ele ia abusar dela mais uma vez. O caso seguiu para tribunal e terminou com a condenação do agressor a uma pena curta e suspensa. Um teste de paternidade confirmou que a criança era filha dele.
Segundo o relatório da Direcção-Geral de Administração Interna sobre violência doméstica, em 2008 quase metade (46,8%) das agressões denunciadas à PSP e à GNR aconteceu entre as 19h e a 1h. Os conflitos foram mais frequentes ao fim-de-semana (33,9%) e entre Junho e Setembro (38,1%), os meses de férias. Os dados indicam ainda que 55,7% das queixas foram feitas no dia do episódio de violência, pelas próprias vítimas (76,2%). Mas ainda há muitas participações feitas por familiares, vizinhos e amigos.
O que levou Constança, 50 anos, a pedir ajuda foi a determinação de uma colega de trabalho. Disse-lhe: “Se tu não apresentares queixa, apresento eu.” Não se dirigiu à polícia. A medo, contactou o gabinete de Cascais da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Entrou envergonhada. Não era suposto uma médica ser vista ali. Contou que o marido, alta patente das Forças Armadas, lhe batia desde a segunda semana de casamento porque ela se recusara a deixar de trabalhar. “Por norma, os agressores não gostam que elas tenham uma actividade fora de casa. É uma maneira de as isolarem e de lhes cortarem a realização pessoal”, esclarece Catarina Ribeiro.
Nem sabe quantas sovas levou em 20 anos de casamento. As noites de serviço no hospital enraiveciam o marido e serviam de pretexto para ele a espancar. Constança afastou-se de colegas e amigos na esperança de pôr fim às acusações de adultério. Não resultou. A violência aumentava. Foi assistida duas vezes no seu local de trabalho: uma com uma fractura maxilar, outra com uma vértebra partida. Não deu justificações sobre os ferimentos.
À excepção da colega, ninguém a ajudou. A irmã sugeriu-lhe que ficasse quieta: o mau feitio não era de agora, mais valia continuar a aceitar. A separação ia cair mal entre as outras famílias de Cascais. Constança ainda vive com o marido, mas já entrou com o processo de divórcio. Avisou-o de que tinha procurado a APAV. Desde então, ele não voltou a bater-lhe. Agora aposta na tortura psicológica. Ela está decidida a acabar a relação. Vai levar a tribunal um relatório técnico sobre as agressões que sofreu.
Falar do casamento deixa Constança com um ar assustado. “Estas vítimas são muito ansiosas e, pela necessidade de se protegerem, tornam-se hipervigilantes. Têm tremores, ataques de pânico e perturbações do sono”, diz Celina Manita. Há registos de tentativas de suicídio, de problemas de alcoolismo e de distúrbios alimentares.
Na fase final do casamento, Carolina, 40 anos, chegou a pesar 35 quilos. “Sentia-me completamente degradada. Pior do que uma ****. Não era mais do que uma escrava. Trabalhava, cuidava dos filhos, sustentava a casa e tinha de estar à disposição do meu amo. Era como se estivesse enterrada viva”, confessa à SÁBADO esta engenheira da zona Centro do País.
A relação dos dois foi sempre conturbada. Durante o namoro, discutiam muito. Ele tinha ciúmes doentios. Insultava os amigos, homens, dela. Carolina acabou com as saídas à noite para evitar cenas desagradáveis. “Era tão manipulador que me levava a dizer que ele tinha razão e a pedir desculpa.” Então, vinham os castigos. Proibia-a de ir ao bar da faculdade e de sair ao fim-de-semana. Terminaram várias vezes. Mas ela cedia sempre.
Viviam juntos há algum tempo quando Carolina descobriu uma marca de bâton numa camisa dele. O marido ainda negou as evidências. No fim, assumiu que tinha estado no aniversário de um amigo na boîte Elefante Branco. Carolina quis sair de casa. Ele deu-lhe uma tareia. “Chapadas, murros, já não me lembro. Foi a primeira de tantas.” Deixou-o, mas voltou outra vez. “Não conheço nenhuma mulher que queira acabar a relação ao fim da primeira bofetada”, diz Carla Machado, da Universidade do Minho.
As agressões aconteciam uma ou duas vezes por ano e eram sempre seguidas de períodos de compensação. O empresário do ramo automóvel marcava fins-de-semana em hotéis de cinco estrelas e refeições em bons restaurantes. A violência foi em crescendo, sobretudo quando ele bebia.
Uma noite, apareceu às 5h, com mais uma nódoa de bâton. Ela vestiu-se, decidida a ir-se embora. Ele agarrou nela, arrastou-a até ao mezanino do apartamento e atirou-a para o andar de baixo. Por sorte, não caiu directamente dali. “Vim aos trambolhões pelas escadas, bati com a cabeça. A roupa ficou toda rasgada nas mangas.” Fugiu assim que pôde, chamou o irmão e a polícia e foi ao hospital. Não escondeu aos médicos que tinha sido vítima de violência doméstica.
Noutra madrugada, pendurou-a da janela de um andar muito alto. Arrancou-a da cama, espancou-a e empurrou-a para o abismo. “A seguir vai a **** da tua filha”, gritou. Carolina agarrou-se como pôde às caixilharias. Fez tanta força que rasgou os músculos das pernas até ao osso. “Foi uma eternidade.” Mal ele a largou, pegou na miúda e fugiu. Tornou a regressar.
Fora de casa, a vida profissional prosseguia como se nada fosse. Se tivesse um olho negro, faltava. Dizia que estava com gripe. “As desculpas são esfarrapadas. Inventam que tropeçaram no aspirador ou que caíram das escadas. Cheguei a fazer um julgamento com uma colega minha de óculos escuros”, revela a desembargadora Joana Salinas.
As funções de directora comercial não permitiam momentos de fragilidade. Fazia milhares de quilómetros por dia. Em casa, o inferno era sempre o mesmo. “Chamava--me ‘burra’, ‘mongolóide de *****’, ‘puta do *******’. Incentivava-me a ter bons empregos, mas ia ter com os meus funcionários e insultava-os.”
O empresário passava a maior parte do tempo fora de casa. “Quando ele dizia ‘Vou sair’ eu sabia que ia levar uma tareia.” Nos últimos anos de casamento, apertava-lhe o pescoço. Era o pior que lhe podia fazer. “Depois de ele me bater, eu deitava-me e sentia tanto frio. Estava perdida e não queria tomar decisões.”
Atingiu o limite numa noite de Verão. Carolina pediu-lhe para não tocar em álcool. Ele chegou tarde e completamente bêbedo. Olhou para ela e disse: “Agora nós.” Mandou-a contra o sofá e contra as paredes, bateu-lhe com a cabeça na mesa da cozinha, tentou asfixiá-la. Num dos intervalos, ela guardou disfarçadamente as chaves do carro e o telemóvel – era assim que se preparava para fugir. Tentou sair e foi apanhada. “Se tivesse ali uma pistola, matava-o mesmo”, conta à SÁBADO.
A sova durou duas horas e meia. E só terminou porque os filhos chamaram a polícia às escondidas. No limite das forças, conseguiu abrir a porta quando os agentes chegaram ao patamar do apartamento dela. “Agarrei-os pelo colarinho, puxei-os para dentro de casa e disse: ‘Agora já não saem daqui.’ Se eles não viessem, eu não saía dali viva.” Chorou, implorou-lhes que não a deixassem lá com as crianças. Sem sucesso. A PSP limitou-se a ficar por perto para garantir que, nessa madrugada, não havia mais pancada.
Decidiu divorciar-se. Não teve tempo para preparar tudo como gostaria e abandonou a própria casa com a roupa do corpo. Ele prometeu-lhe guerra. E cumpriu. Carolina está a reconstruir a vida, mas o ex-marido não desistiu de a aterrorizar. Nunca mais esteve com outro homem. Nem acredita que algum dia volte a estar.
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A família sempre soube que o marido de Antónia lhe batia. Eles viam-na com hematomas, feridas e braços ao peito, mas nunca fizeram nada. O escândalo de um divórcio seria, para todos, muito pior do que conviver com um casamento de fachada. Chegaram a levá-la, gravemente ferida, a uma clínica privada. Visitaram-na em coma. Continuaram a exigir-lhe silêncio. A mãe repetia: “As mulheres do Norte morrem de pé.”
O facto de a conduzirem a uma instituição de saúde privada garantia o sigilo, apesar de, por lei, os profissionais de saúde serem obrigados a denunciar estes crimes. As boas relações com os médicos permitiam que as agressões não ficassem registadas nas fichas clínicas. Oficialmente, os internamentos de Antónia eram resultado de crises depressivas. Essa discrição é o motivo pelo qual as mulheres da alta sociedade evitam hospitais públicos.
A tareia, soube depois, não foi só por não ter querido almoçar – foi também por ter exposto o marido à vergonha de os dois abandonarem a festa de casamento apenas três horas depois do início. Antónia tinha disfarçado a palidez extrema com maquilhagem, mas estava exausta por causa dos preparativos. A pressão era tanta que a primeira vez que se viu vestida de noiva desmaiou. Na véspera do casamento, fugiu de casa pelo telhado. Voltou para poupar os pais e os irmãos ao escândalo. Acreditou que aprenderia a viver com o marido. Enganou-se.
Em público, o marido de Antónia parecia um cavalheiro. Levava-a a viajar para os destinos mais luxuosos e gastava largos milhares de euros nas jóias que lhe oferecia à frente de toda a família. Em casa, os maus tratos continuavam. Não precisava de motivo para bater na mulher. Dependia do dia. Se ela falasse, era porque falava. Se estivesse calada, era porque estava calada. “E se ele bebesse uma reserva de Cabeça de Burro tinto [um dos seus vinhos de eleição] tornava--se ainda mais macabro”, diz à SÁBADO.
Havia semanas em que apanhava mais do que uma vez. “Batia-me com todo o tipo de objectos, apontava-me armas à cabeça. Todos os anos me partia um braço, uma perna ou qualquer outra coisa. Mordia-me muito em todo o corpo. Estive em coma e perdi a conta às hospitalizações. Ele tinha uma força doida.” Nos momentos em que a mulher estava menos frágil, tornava-se sádico. Às vezes, surpreendia-a deitada num sofá a ler. Vinha pé ante pé e, de repente, apertava-lhe o livro contra a cara para a asfixiar. Depois, libertava-a e perguntava: “Achavas que eu te ia matar? Nããão. Amo-te demasiado!”
A pior sova de todas foi a que levou quando estava grávida de 6 meses. “O meu ex-marido decidiu que queria matar o bebé.” Deu-lhe bofetadas, socos e um violento pontapé na barriga. “Voei um corredor inteiro, muito longo e largo, e aterrei em cima de um móvel. Comecei logo a perder sangue. Não me socorreu.”
Uma das empregadas alertou um familiar. Antónia entrou num grande hospital público com um descolamento quase total da placenta. O médico próximo que a assistiu não denunciou a situação e ela nunca lhe perdoou o silêncio. “Podia ter sido tudo diferente.”
Não há estatísticas exactas sobre a violência doméstica em Portugal. Algumas mulheres demoram anos a pedir ajuda e calcula-se que muitas mais nunca cheguem a fazê-lo. Em 2008, a PSP e a GNR registaram 27.144 queixas. Dessas, 9,2% diziam respeito a vítimas com cursos superiores. “Nas classes sociais mais altas as agressões também existem, embora numa percentagem mais reduzida”, diz à SÁBADO Carla Machado, professora da Universidade do Minho e coordenadora do estudo Enquadramento Cultural da Violência contra Mulheres e Crianças. Segundo o inquérito de 2005, 10% das mulheres mais favorecidas admitiram já ter sido alvo de algum tipo de agressão (contra 33% das classes mais baixas). As vítimas ocupam profissões de topo: são médicas, juízas, professoras universitárias e administradoras de empresas.
A família sempre soube que o marido de Antónia lhe batia. Eles viam-na com hematomas, feridas e braços ao peito, mas nunca fizeram nada. O escândalo de um divórcio seria, para todos, muito pior do que conviver com um casamento de fachada. Chegaram a levá-la, gravemente ferida, a uma clínica privada. Visitaram-na em coma. Continuaram a exigir-lhe silêncio. A mãe repetia: “As mulheres do Norte morrem de pé.”
O facto de a conduzirem a uma instituição de saúde privada garantia o sigilo, apesar de, por lei, os profissionais de saúde serem obrigados a denunciar estes crimes. As boas relações com os médicos permitiam que as agressões não ficassem registadas nas fichas clínicas. Oficialmente, os internamentos de Antónia eram resultado de crises depressivas. Essa discrição é o motivo pelo qual as mulheres da alta sociedade evitam hospitais públicos.
Passaram mais de 10 anos até que Antónia tivesse coragem para planear o divórcio. Sofreu as consequências. Por ter saído de casa, ainda hoje, alguns anos depois, está proibida de participar nos encontros de família aos domingos. No Natal, não tem lugar à mesa. “Acompanhei senhoras que foram afastadas destes rituais enquanto o agressor continua a ser acolhido”, diz Celina Manita, directora do Gabinete de Estudo e Apoio a Vítimas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP).
“Estas vítimas estão bastante mais isoladas do que as outras. As famílias fazem-nas sentir-se culpadas de se defenderem e protegerem”, explica Rosário Figueiredo, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Além disso, “aqui não há denúncias de vizinhos, como nos bairros”. Em muitos casos, as grandes dimensões das casas, só por si, bastam para que ninguém oiça o que se passa para lá das próprias paredes.
Sem saber, Antónia construiu o seu próprio bunker. Para reforçar o isolamento térmico e acústico, mandou fazer paredes à prova de som. Foi por isso que ninguém ouviu nada na noite em que levou uma facada num pulmão. Esteve toda a refeição a ouvir provocações sem responder. O marido enfureceu-se com o silêncio, levantou-se e encaminhou-se para a cozinha. Nesse instante, ela tremeu. Teve a certeza de que ele a ia atacar com uma das várias facas expostas na bancada de açougueiro que ela própria mandara construir.
Correu para a porta e agarrou numa faca para se defender. Ele empurrou-a contra a parede, imobilizou-a e encostou-lhe outra ao pescoço. “Agora fala, tem coragem!”, atiçou. Antónia sentia a lâmina tocar na pele, a provocar golpes. “Lembro-me da cara dele, dos olhos. Fiquei perdida. Não conseguia falar nem reagir. Não tive percepção da dor, mas quando vi sangue pensei: ‘É agora que te vou matar’”, diz à SÁBADO.
Levantou a mão mas ele foi mais rápido. Torceu-lhe o braço e cravou-lhe a faca no peito. Só teve dor quando a lâmina saiu. Desmaiou. Dessa vez, o marido levou-a à clínica numa carrinha Volvo. Foi operada pela primeira vez e, mais tarde, sujeita a nova intervenção, fora do País. Complicações provocadas pelo ferimento obrigaram-na a tirar parte do lobo inferior do pulmão direito.
As agressões tornaram-se cada vez mais violentas. “Tinha noção de que ele ia premeditar a minha morte.” A suspeita transformou-se em certeza depois de um grave desastre de automóvel. Um funcionário da oficina deixou-lhe o carro estacionado à porta do escritório. Antónia saiu à pressa para um compromisso. Tinha fama de guiar depressa. Nem sabe a que velocidade seguia quando perdeu um pneu. Despistou-se.
O estado de Antónia era grave, com fracturas múltiplas nas vértebras, esterno, costelas e membros. Esteve inconsciente, mas sabe que foi assistida por um inspector da Brigada de Minas e Armadilhas da Polícia Judiciária. Desconhece como ele foi lá parar. O marido apareceu pouco depois. Apesar da seriedade dos ferimentos, quis ser ele a transportá-la ao hospital.
Logo que ficou estável foi transferida para uma clínica, onde recuperou durante seis meses. Uma noite, recebeu fora de horas a visita do inspector da PJ que a ajudara no dia do acidente. Aconselhou-a a não deixar destruir o carro. Suspeitava de sabotagem.
De repente, pôs tudo em causa. Descobriu que havia vários seguros de vida em seu nome e, portanto, a sua morte renderia uma fortuna. Como não tinha acesso às contas bancárias – limitava-se a usar o American Express platina – não soube logo que, só pelo acidente, tinha recebido 700 mil euros. Para ela era claro: ou saía de casa ou morria.
Planeou tudo com frieza. Mal voltou ao trabalho, levantou uma laje do chão do escritório para esconder dinheiro. Em pouco mais de um mês juntou alguns milhares de euros em notas. Tornou-se dócil para o marido. Até que forjou uma viagem. Avisou-o de que ia estar fora uns dias, mas saiu preparada para voltar dali a nada. Queria surpreendê-lo num dos encontros íntimos que ele mantinha com outras mulheres na sua ausência. Entrou, viu e saiu. O medo de que ela provocasse um escândalo público foi suficiente para o deter. Ela já não voltou.
Estão divorciados desde 2002. Apesar da oposição de todos, apresentou centenas de queixas contra o marido – por maus tratos, falsificação de assinaturas e fraudes financeiras em que ele a envolveu. Nesta guerra, perdeu a guarda do filho. Nunca mais deixou de receber ameaças. No início do ano, dois homens atravessaram um carro à frente do dela. Deram-lhe uma sova com um bastão de picos e deixaram um recado do ex-marido: “Da próxima vez é até à morte.” A instituição que lhe dá apoio traçou-lhe um plano de segurança. Vive em parte incerta. Os processos judiciais ainda correm.
É muito raro um caso destes chegar a tribunal. “Em 22 anos de carreira, só tive um, de uma economista”, relata Joana Salinas, juíza-desembargadora do Tribunal da Relação do Porto e presidente da delegação de Matosinhos da Cruz Vermelha Portuguesa. Tudo por causa da vergonha. “Elas sentem o peso de não terem sido capazes de pôr fim à violência, apesar de serem mulheres com instrução e elevado nível financeiro”, acrescenta Celina Manita, da FPCEUP. Esse é, aliás, um dos factores que as distingue das outras vítimas.
Mas há outros pormenores que fazem a diferença. “Os agressores são elaborados”, diz Catarina Ribeiro. Sabem bater sem deixar marcas. “Evitam agredi-las no rosto e nas mãos. Usam toalhas molhadas e sabonetes dentro de meias”, descreve Celina Manita. Há quem recorra a listas telefónicas. Os músculos ficam arrasados e a pele quase intacta.
A tortura psicológica é mais eficaz. Humilham-nas, insultam-nas, convencem-nas de que controlam a polícia e os tribunais. Agridem-nas e pedem desculpa com classe. “Acompanhei um caso em que o abusador batia na mulher à frente dos filhos. Depois dizia-lhes que era tudo encenação: ele e a mãe estavam só a ensaiar uma peça de um dramaturgo famoso.”
Os dois primeiros anos que Mariana viveu com o marido foram felizes. Casou cedo e teve logo filhos. Para a alta burguesia do Norte, eram um casal modelo: ele empresário, ela administradora de uma empresa agrícola. O pior foi quando Mariana se negou a praticar sexo anal. A recusa valeu-lhe a primeira agressão física. Foi espancada até ceder. Ele prendia-a numa cadeira e dava-lhe sovas. Amarrava-a enquanto a violava.
Ninguém calculava o que acontecia a Mariana. O marido oferecia-lhe viagens, presentes e carros, para causar boa impressão junto da família. Um dia, ela ganhou coragem e ameaçou denunciá-lo. Mudou de quarto e acabou com quaisquer contactos físicos. Começaram os insultos. Chamava-lhe “feia”, “gorda” e “vaca”.
Acusava-a de ter amantes, dizia que ela estava louca. Quando ficou grávida do terceiro filho, convenceu-se de que ele tinha razão. O marido negou ser o pai da criança. E ela não se lembrava de ter ido para a cama com uma única pessoa. Procurou um psiquiatra.
Os técnicos que a acompanharam ajudaram-na a desvendar o mistério. Estranharam a ausência de problemas de sono numa situação de tanta ansiedade. Além disso, pareceu-lhes bizarro que, apesar da crise, ele continuasse a preparar-lhe todos os dias uma bebida à noite.
Desconfiaram que ele a sedava e sugeriram-lhe que passasse a deixar o copo intacto. Por precaução, elaboraram-lhe um plano de segurança. Deveria deitar-se com uma roupa por baixo do pijama, ter documentos, telemóvel e chaves do carro à mão para o caso de precisar de fugir.
Começou logo a ter mais dificuldade para adormecer. Estava acordada na noite em que ouviu o marido entrar no seu quarto. Fingiu não dar por nada. Esperou e apenas reagiu no momento em que ele ia abusar dela mais uma vez. O caso seguiu para tribunal e terminou com a condenação do agressor a uma pena curta e suspensa. Um teste de paternidade confirmou que a criança era filha dele.
Segundo o relatório da Direcção-Geral de Administração Interna sobre violência doméstica, em 2008 quase metade (46,8%) das agressões denunciadas à PSP e à GNR aconteceu entre as 19h e a 1h. Os conflitos foram mais frequentes ao fim-de-semana (33,9%) e entre Junho e Setembro (38,1%), os meses de férias. Os dados indicam ainda que 55,7% das queixas foram feitas no dia do episódio de violência, pelas próprias vítimas (76,2%). Mas ainda há muitas participações feitas por familiares, vizinhos e amigos.
O que levou Constança, 50 anos, a pedir ajuda foi a determinação de uma colega de trabalho. Disse-lhe: “Se tu não apresentares queixa, apresento eu.” Não se dirigiu à polícia. A medo, contactou o gabinete de Cascais da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Entrou envergonhada. Não era suposto uma médica ser vista ali. Contou que o marido, alta patente das Forças Armadas, lhe batia desde a segunda semana de casamento porque ela se recusara a deixar de trabalhar. “Por norma, os agressores não gostam que elas tenham uma actividade fora de casa. É uma maneira de as isolarem e de lhes cortarem a realização pessoal”, esclarece Catarina Ribeiro.
Nem sabe quantas sovas levou em 20 anos de casamento. As noites de serviço no hospital enraiveciam o marido e serviam de pretexto para ele a espancar. Constança afastou-se de colegas e amigos na esperança de pôr fim às acusações de adultério. Não resultou. A violência aumentava. Foi assistida duas vezes no seu local de trabalho: uma com uma fractura maxilar, outra com uma vértebra partida. Não deu justificações sobre os ferimentos.
À excepção da colega, ninguém a ajudou. A irmã sugeriu-lhe que ficasse quieta: o mau feitio não era de agora, mais valia continuar a aceitar. A separação ia cair mal entre as outras famílias de Cascais. Constança ainda vive com o marido, mas já entrou com o processo de divórcio. Avisou-o de que tinha procurado a APAV. Desde então, ele não voltou a bater-lhe. Agora aposta na tortura psicológica. Ela está decidida a acabar a relação. Vai levar a tribunal um relatório técnico sobre as agressões que sofreu.
Falar do casamento deixa Constança com um ar assustado. “Estas vítimas são muito ansiosas e, pela necessidade de se protegerem, tornam-se hipervigilantes. Têm tremores, ataques de pânico e perturbações do sono”, diz Celina Manita. Há registos de tentativas de suicídio, de problemas de alcoolismo e de distúrbios alimentares.
Na fase final do casamento, Carolina, 40 anos, chegou a pesar 35 quilos. “Sentia-me completamente degradada. Pior do que uma ****. Não era mais do que uma escrava. Trabalhava, cuidava dos filhos, sustentava a casa e tinha de estar à disposição do meu amo. Era como se estivesse enterrada viva”, confessa à SÁBADO esta engenheira da zona Centro do País.
A relação dos dois foi sempre conturbada. Durante o namoro, discutiam muito. Ele tinha ciúmes doentios. Insultava os amigos, homens, dela. Carolina acabou com as saídas à noite para evitar cenas desagradáveis. “Era tão manipulador que me levava a dizer que ele tinha razão e a pedir desculpa.” Então, vinham os castigos. Proibia-a de ir ao bar da faculdade e de sair ao fim-de-semana. Terminaram várias vezes. Mas ela cedia sempre.
Viviam juntos há algum tempo quando Carolina descobriu uma marca de bâton numa camisa dele. O marido ainda negou as evidências. No fim, assumiu que tinha estado no aniversário de um amigo na boîte Elefante Branco. Carolina quis sair de casa. Ele deu-lhe uma tareia. “Chapadas, murros, já não me lembro. Foi a primeira de tantas.” Deixou-o, mas voltou outra vez. “Não conheço nenhuma mulher que queira acabar a relação ao fim da primeira bofetada”, diz Carla Machado, da Universidade do Minho.
As agressões aconteciam uma ou duas vezes por ano e eram sempre seguidas de períodos de compensação. O empresário do ramo automóvel marcava fins-de-semana em hotéis de cinco estrelas e refeições em bons restaurantes. A violência foi em crescendo, sobretudo quando ele bebia.
Uma noite, apareceu às 5h, com mais uma nódoa de bâton. Ela vestiu-se, decidida a ir-se embora. Ele agarrou nela, arrastou-a até ao mezanino do apartamento e atirou-a para o andar de baixo. Por sorte, não caiu directamente dali. “Vim aos trambolhões pelas escadas, bati com a cabeça. A roupa ficou toda rasgada nas mangas.” Fugiu assim que pôde, chamou o irmão e a polícia e foi ao hospital. Não escondeu aos médicos que tinha sido vítima de violência doméstica.
Noutra madrugada, pendurou-a da janela de um andar muito alto. Arrancou-a da cama, espancou-a e empurrou-a para o abismo. “A seguir vai a **** da tua filha”, gritou. Carolina agarrou-se como pôde às caixilharias. Fez tanta força que rasgou os músculos das pernas até ao osso. “Foi uma eternidade.” Mal ele a largou, pegou na miúda e fugiu. Tornou a regressar.
Fora de casa, a vida profissional prosseguia como se nada fosse. Se tivesse um olho negro, faltava. Dizia que estava com gripe. “As desculpas são esfarrapadas. Inventam que tropeçaram no aspirador ou que caíram das escadas. Cheguei a fazer um julgamento com uma colega minha de óculos escuros”, revela a desembargadora Joana Salinas.
As funções de directora comercial não permitiam momentos de fragilidade. Fazia milhares de quilómetros por dia. Em casa, o inferno era sempre o mesmo. “Chamava--me ‘burra’, ‘mongolóide de *****’, ‘puta do *******’. Incentivava-me a ter bons empregos, mas ia ter com os meus funcionários e insultava-os.”
O empresário passava a maior parte do tempo fora de casa. “Quando ele dizia ‘Vou sair’ eu sabia que ia levar uma tareia.” Nos últimos anos de casamento, apertava-lhe o pescoço. Era o pior que lhe podia fazer. “Depois de ele me bater, eu deitava-me e sentia tanto frio. Estava perdida e não queria tomar decisões.”
Atingiu o limite numa noite de Verão. Carolina pediu-lhe para não tocar em álcool. Ele chegou tarde e completamente bêbedo. Olhou para ela e disse: “Agora nós.” Mandou-a contra o sofá e contra as paredes, bateu-lhe com a cabeça na mesa da cozinha, tentou asfixiá-la. Num dos intervalos, ela guardou disfarçadamente as chaves do carro e o telemóvel – era assim que se preparava para fugir. Tentou sair e foi apanhada. “Se tivesse ali uma pistola, matava-o mesmo”, conta à SÁBADO.
A sova durou duas horas e meia. E só terminou porque os filhos chamaram a polícia às escondidas. No limite das forças, conseguiu abrir a porta quando os agentes chegaram ao patamar do apartamento dela. “Agarrei-os pelo colarinho, puxei-os para dentro de casa e disse: ‘Agora já não saem daqui.’ Se eles não viessem, eu não saía dali viva.” Chorou, implorou-lhes que não a deixassem lá com as crianças. Sem sucesso. A PSP limitou-se a ficar por perto para garantir que, nessa madrugada, não havia mais pancada.
Decidiu divorciar-se. Não teve tempo para preparar tudo como gostaria e abandonou a própria casa com a roupa do corpo. Ele prometeu-lhe guerra. E cumpriu. Carolina está a reconstruir a vida, mas o ex-marido não desistiu de a aterrorizar. Nunca mais esteve com outro homem. Nem acredita que algum dia volte a estar.
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