Madrid quer nacionalizar toda a água engarrafada
O Ministério da Indústria Espanhol, num surpreendente ante-projecto de lei, quer nacionalizar as águas minerais e termais. Para as concessionar depois aos privados, a troco de uma taxa. A discussão está aberta.
Miguel Pacheco
A notícia caiu como um dilúvio. O governo Zapatero quer nacionalizar todas as águas minerais e termais passando para as mãos do Estado um negócio que gera, por ano, mil milhões de euros. O argumento é simples: todos os recursos geológicos e hídricos são propriedade pública. E não faz sentido que a água, mesmo que para engarrafar, esteja nas mãos das empresas sem qualquer tipo de compensação para o Estado.
Perante as acusações, o Ministério da Indústria foge ao ‘cliché da “nacionalização” com o argumento de que as águas continuam nas mãos dos privados, agora em regimes de concessão de 60 e 150 anos. “É um atropelo e um despropósito político e jurídico”, acusam. “É uma inadmissível intervenção económica do Governo.” O anteprojecto legislativo, que viu a luz do dia nas páginas do diário espanhol “Expansion”, vai afectar 95% das empresas neste sector. A guerra, política, jurídica e filosófica, promete ferver em pouca água nos próximos tempos. Com muitas dúvidas à mistura.
O problema legal
O primeiro debate é jurídico. “O ponto essencial é a determinação do regime de propriedade”. O assunto não é pacífico, avisa a proposta do Ministério da Indústria, até porque o novo projecto de lei quer converter em bem público - “nacionalizar” - sem expropriar. Aqui entra o argumento nacionalista: “Um dos objectivos desta lei é preservar a unidade do território e impedir ofensivas estrangeiras sobre este sector.”
Seguido à letra, esta nacionalização só tem margem de manobra em Espanha, porque manda a Constituição portuguesa que só a expropriação é um opção viável para tornar público o que é privado. Menezes Cordeiro, especialista em direitos reais e professor na Universidade Católica de Lisboa, cita o artigo 84, nº1 para classificar o domínio público e travar eventuais ofensivas nacionalistas do Estado. “O nosso direito não prevê a nacionalização, mas sim a expropriação, com a devida compensação”. E “a tendência é para o Estado alienar prestações públicas, não chamar a si bens”.
Quanto às águas, o actual ordenamento jurídico que regula o sector em Portugal cita uma diferença principal face a Espanha: as águas minerais são do domínio público, as águas de nascente podem ser privadas. A diferença é simples de explicar. As primeiras (as minerais) integram-se no domínio público e obrigam a concessão. Quanto às segundas (as de nascente), nascem e são exploradas em terreno privado e só necessitam de ser licenciadas para chegarem às prateleiras dos supermercados.
O problema filosófico
O debate em Espanha é um regresso à trilogia clássica e ao direito à “vida, liberdade e propriedade”. Cinco séculos volvidos, o anteprojecto espanhol não cita o principal inspirador da Revolução inglesa - John Locke - mas argumenta pelo direito dos cidadãos à propriedade. E vai mais longe: “Os recursos minerais, geológicos e hidrológicos do território espanhol são propriedade de todos os espanhóis”. Assim sendo, merecem ser taxados para gozo dos contribuintes. E devem, no fim do período de concessão, ser disponibilizados a outros interessados.
Dito isto, o que à primeira vista parece um nacionalismo exacerbado, não o é. “O argumento filosófico diz que os recursos naturais não pertencem a ninguém. São de todos”, defende João Cardoso Rosas, “são da comunidade”. E “pode ser-se favorável à propriedade privada e advogado do capitalismo, mas também defender uma compensação para todos.” O Estado, na medida em que representa a comunidade política, é o melhor receptáculo destas verbas, defende o professor de teoria política, para quem a reforma avançada em Espanha é “interessante”. Mas com uma ressalva. “Era interessante que se lançasse um imposto sobre os recursos naturais e se cortasse noutros impostos, como os sobre os rendimentos”, argumenta Cardoso Rosas.
A ideia, aparentemente inédita, tem feito o seu caminho em Portugal Há alguns anos, quando ainda era ministro das Obras Públicas, António Mexia confessava, a título não-oficial, que um imposto sobre a terra para financiar o Estado seria um “assunto a discutir” . Taxava-se assim o uso de um bem público para benefício de todos, compensando assim os desequilíbrios orçamentais com uma nova forma de rendimento. A ideia ainda não pegou, mesmo que a terra seja à partida de todos., concorda Cardoso Rosas.. “E o facto de termos uma parcela deveria implicar uma compensação ”. Os bons exemplos falam por si.
O problema financeiro
Mais de 1106,96 dólares. É quanto recebe, todos os anos, cada cidadão no Alaska pela exploração dos “seus” recursos naturais - gás e petróleo. O cheque é taxável por lei, permitindo ao Estado reter parte dos ganhos distribuídos, alimentando o ciclo das receitas do Estado. Na prática, este fundo permanente serve ainda outro propósito: dá a cada pessoa uma parte no “seu” Estado, um princípio que é, para alguns teóricos, a solução para a falta de sustentabilidade financeira do estado-providência. “A solução para os problemas fiscais, sociais e ambientais é só uma: temos de criar mais proprietários. Só assim, escreve Jeff Gates, autor do “Ownership Solution, “conseguiremos transformar em capitalistas aqueles que têm pouco capital para investir. E distribuir mais sem forçar uma redistribuição da riqueza que já tem dono”. Fica o aviso à tentação nacionalista em Espanha..
Do domínio público à Lei da Titularidade dos Recursos
O abastecimento de água foi do domínio público em Portugal até que, nos anos 80 do século passado e alegando razões de modernização do sistema e saneamento das águas residuais, a alteração à Delimitação dos Sectores, em 1991, permitiu a participação do sector privado nos chamados sistemas municipais e multimunicipais.
No mesmo ano, a EPAL foi transformada em Sociedade Anónima, enquanto sucessivos decretos alteravam o regime jurídico do domínio hídrico. Posteriormente, e com base na EPAL, foi constituída a ‘holding’ pública do sector das águas, a Águas de Portugal SGPS. Tais mudanças ocorreram nos derradeiros anos dos governos de Cavaco Silva mas vieram a ser aceites e desenvolvidos pelos executivos de António Guterres, designadamente através do Plano Estratégico de Abastecimento de Água e de Saneamento de Águias Residuais, aprovado em 2000.
A queda do segundo Governo de António Guterres parece ter tido consequências neste domínio. Com efeito, em Novembro de 2003, num artigo de opinião no Expresso, o anterior presidente das Águas de Portugal, Mário Lino, criticava o aparente abandono da anterior estratégia e a forma “atabalhoada” como o processo passou a ser conduzido.
Dois governos mais tarde, o Governo de José Sócrates, do qual faz parte precisamente Mário Lino, adopta uma Lei-Quadro da Água e uma lei da Titularidade dos Recursos Hídricos, em finais de 2005. Nesta lógica, a concessão a privados da administração dos recursos hídricos poderá ser o passo que se segue.
In DE
O Ministério da Indústria Espanhol, num surpreendente ante-projecto de lei, quer nacionalizar as águas minerais e termais. Para as concessionar depois aos privados, a troco de uma taxa. A discussão está aberta.
Miguel Pacheco
A notícia caiu como um dilúvio. O governo Zapatero quer nacionalizar todas as águas minerais e termais passando para as mãos do Estado um negócio que gera, por ano, mil milhões de euros. O argumento é simples: todos os recursos geológicos e hídricos são propriedade pública. E não faz sentido que a água, mesmo que para engarrafar, esteja nas mãos das empresas sem qualquer tipo de compensação para o Estado.
Perante as acusações, o Ministério da Indústria foge ao ‘cliché da “nacionalização” com o argumento de que as águas continuam nas mãos dos privados, agora em regimes de concessão de 60 e 150 anos. “É um atropelo e um despropósito político e jurídico”, acusam. “É uma inadmissível intervenção económica do Governo.” O anteprojecto legislativo, que viu a luz do dia nas páginas do diário espanhol “Expansion”, vai afectar 95% das empresas neste sector. A guerra, política, jurídica e filosófica, promete ferver em pouca água nos próximos tempos. Com muitas dúvidas à mistura.
O problema legal
O primeiro debate é jurídico. “O ponto essencial é a determinação do regime de propriedade”. O assunto não é pacífico, avisa a proposta do Ministério da Indústria, até porque o novo projecto de lei quer converter em bem público - “nacionalizar” - sem expropriar. Aqui entra o argumento nacionalista: “Um dos objectivos desta lei é preservar a unidade do território e impedir ofensivas estrangeiras sobre este sector.”
Seguido à letra, esta nacionalização só tem margem de manobra em Espanha, porque manda a Constituição portuguesa que só a expropriação é um opção viável para tornar público o que é privado. Menezes Cordeiro, especialista em direitos reais e professor na Universidade Católica de Lisboa, cita o artigo 84, nº1 para classificar o domínio público e travar eventuais ofensivas nacionalistas do Estado. “O nosso direito não prevê a nacionalização, mas sim a expropriação, com a devida compensação”. E “a tendência é para o Estado alienar prestações públicas, não chamar a si bens”.
Quanto às águas, o actual ordenamento jurídico que regula o sector em Portugal cita uma diferença principal face a Espanha: as águas minerais são do domínio público, as águas de nascente podem ser privadas. A diferença é simples de explicar. As primeiras (as minerais) integram-se no domínio público e obrigam a concessão. Quanto às segundas (as de nascente), nascem e são exploradas em terreno privado e só necessitam de ser licenciadas para chegarem às prateleiras dos supermercados.
O problema filosófico
O debate em Espanha é um regresso à trilogia clássica e ao direito à “vida, liberdade e propriedade”. Cinco séculos volvidos, o anteprojecto espanhol não cita o principal inspirador da Revolução inglesa - John Locke - mas argumenta pelo direito dos cidadãos à propriedade. E vai mais longe: “Os recursos minerais, geológicos e hidrológicos do território espanhol são propriedade de todos os espanhóis”. Assim sendo, merecem ser taxados para gozo dos contribuintes. E devem, no fim do período de concessão, ser disponibilizados a outros interessados.
Dito isto, o que à primeira vista parece um nacionalismo exacerbado, não o é. “O argumento filosófico diz que os recursos naturais não pertencem a ninguém. São de todos”, defende João Cardoso Rosas, “são da comunidade”. E “pode ser-se favorável à propriedade privada e advogado do capitalismo, mas também defender uma compensação para todos.” O Estado, na medida em que representa a comunidade política, é o melhor receptáculo destas verbas, defende o professor de teoria política, para quem a reforma avançada em Espanha é “interessante”. Mas com uma ressalva. “Era interessante que se lançasse um imposto sobre os recursos naturais e se cortasse noutros impostos, como os sobre os rendimentos”, argumenta Cardoso Rosas.
A ideia, aparentemente inédita, tem feito o seu caminho em Portugal Há alguns anos, quando ainda era ministro das Obras Públicas, António Mexia confessava, a título não-oficial, que um imposto sobre a terra para financiar o Estado seria um “assunto a discutir” . Taxava-se assim o uso de um bem público para benefício de todos, compensando assim os desequilíbrios orçamentais com uma nova forma de rendimento. A ideia ainda não pegou, mesmo que a terra seja à partida de todos., concorda Cardoso Rosas.. “E o facto de termos uma parcela deveria implicar uma compensação ”. Os bons exemplos falam por si.
O problema financeiro
Mais de 1106,96 dólares. É quanto recebe, todos os anos, cada cidadão no Alaska pela exploração dos “seus” recursos naturais - gás e petróleo. O cheque é taxável por lei, permitindo ao Estado reter parte dos ganhos distribuídos, alimentando o ciclo das receitas do Estado. Na prática, este fundo permanente serve ainda outro propósito: dá a cada pessoa uma parte no “seu” Estado, um princípio que é, para alguns teóricos, a solução para a falta de sustentabilidade financeira do estado-providência. “A solução para os problemas fiscais, sociais e ambientais é só uma: temos de criar mais proprietários. Só assim, escreve Jeff Gates, autor do “Ownership Solution, “conseguiremos transformar em capitalistas aqueles que têm pouco capital para investir. E distribuir mais sem forçar uma redistribuição da riqueza que já tem dono”. Fica o aviso à tentação nacionalista em Espanha..
Do domínio público à Lei da Titularidade dos Recursos
O abastecimento de água foi do domínio público em Portugal até que, nos anos 80 do século passado e alegando razões de modernização do sistema e saneamento das águas residuais, a alteração à Delimitação dos Sectores, em 1991, permitiu a participação do sector privado nos chamados sistemas municipais e multimunicipais.
No mesmo ano, a EPAL foi transformada em Sociedade Anónima, enquanto sucessivos decretos alteravam o regime jurídico do domínio hídrico. Posteriormente, e com base na EPAL, foi constituída a ‘holding’ pública do sector das águas, a Águas de Portugal SGPS. Tais mudanças ocorreram nos derradeiros anos dos governos de Cavaco Silva mas vieram a ser aceites e desenvolvidos pelos executivos de António Guterres, designadamente através do Plano Estratégico de Abastecimento de Água e de Saneamento de Águias Residuais, aprovado em 2000.
A queda do segundo Governo de António Guterres parece ter tido consequências neste domínio. Com efeito, em Novembro de 2003, num artigo de opinião no Expresso, o anterior presidente das Águas de Portugal, Mário Lino, criticava o aparente abandono da anterior estratégia e a forma “atabalhoada” como o processo passou a ser conduzido.
Dois governos mais tarde, o Governo de José Sócrates, do qual faz parte precisamente Mário Lino, adopta uma Lei-Quadro da Água e uma lei da Titularidade dos Recursos Hídricos, em finais de 2005. Nesta lógica, a concessão a privados da administração dos recursos hídricos poderá ser o passo que se segue.
In DE
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