Noites de Vigília
A noite traz o sofrimento àqueles que sabem que não vão conseguir dormir. Ir para a cama e só acordar de manhã. Quando o Sol raia estão cansados, incapazes de trabalhar. A vigília pode durar muito – dois, três, dez anos. Quase três milhões de portugueses têm insónias.
Há noites em que o desespero é tão grande que Susana não consegue silenciar os gritos nos lençóis da cama. O sofrimento torna-se palpável quando faz eco nas paredes da casa e se transforma em súplica. Nessas noites, em que o desespero é tão grande que se faz grito, os pais acordam e correm para a filha, uma mulher que fica mais menina quando a noite cai.
Susana tem 22 anos e sofre de insónia crónica. É estudante de Enfermagem, está a fazer os últimos estágios em hospitais antes de tentar a sorte no mercado de trabalho. Há cinco anos que tem medo de ir para a cama porque sabe, sente, tão certa, que não vai conseguir adormecer. 'Já experimentei tudo, desde as terapias alternativas como a acupunctura passando pelas mais banais'. Na hora de chamar o sono, já se imaginou deitada numa cama de rede a esfregar o pé na areia da praia, como a aconselhou uma amiga que garantiu que assim era certo e sabido que o sono vinha para ficar. Trocou de almofada com receio de se ter viciado naquela que sempre foi a sua, incitada pelo pai. Deitou-se mais cedo e foi para a cama mais tarde, consoante o que uns e outros diziam ser mais eficaz. Perdeu a conta aos banhos em que depositou a esperança que desta é que ia ser, é que ia conseguir dormir.
Sentada na cama que todas as noites assume a forma do Adamastor, Susana garante que talvez já se tenha habituado. Se é que é possível alguém se habituar ao cansaço. 'Há dias em que pesa. Acordo e sinto um vazio, a cabeça vazia. Ando aqui toda a noite a pensar, a pensar como faço para adormecer. Só queria desligar, apagar, conseguir. Nas noites de maior desespero já saí de casa e fui para a rua andar'.
E, acredita, talvez o problema fosse mais fácil de enfrentar se conseguisse encontrar uma explicação para a insónia. 'Foi aos 17 anos que comecei a dormir mal, mas não posso dizer que haja um motivo. Não sei se teve a ver com a entrada para a faculdade', conjectura. Mas quando o sono começou a tardar, Susana não hesitou em procurar ajuda. 'Mudei muitas vezes de médico e todos me medicaram erradamente porque diziam que era depressão', recorda a jovem que, na maioria dos dias, fica quatro, cinco, seis horas acordada a ver a manhã a nascer na janela. Não se lembra de uma única vez ter precisado do trinado do despertador para acordar. Antecipa-se. E orgulha-se de conseguir manter os olhos abertos para a vida normal.
'Não deixo de fazer nada, nem de sair à noite, embora saiba que quando chego a casa às cinco da manhã não vou dormir nada, nem vale a pena tentar'. Às vezes, quando o cansaço se torna pesado de mais, Susana ‘dispara’ 'para todo o lado'. E zanga-se com os pais, com quem vive, 'apesar de não terem culpa de nada'. As manhãs são, por isso, tudo menos fáceis. 'Quando acordo pergunto-me: será que dormi bem ou dormi mal? Para nós os, que não conseguimos, dormir é uma obsessão que não nos larga, vive connosco'.
São histórias de sofrimento como a de Susana que se sentam todos os dias no consultório da neurologista Teresa Paiva. À espera da solução, da cura, ‘do vai ser possível’. 'As pessoas chegam aqui muito sofridas, com dores difíceis de tratar' conta a médica especialista em problemas do sono, admitindo que 'a abordagem a fazer a estes doentes é muito complicada'. Os casos 'tornam--se mais difíceis quando há uma associação da patologia psiquiátrica, excesso de medicação e problemas de vida persistentes'. Certo é que 'as pessoas com insónia moderada ou severa têm uma pior qualidade de vida, correm um risco maior de sofrer acidentes e têm grandes dificuldades de concentração'.
Carla sabe bem o que isso é. Na história de vida desta engenheira agrónoma o sofrimento escreve-se com o número 10. Um número demasiado redondo para o caso bicudo dos problemas de sono que enfrentou durante uma década. Em dez anos experimentou doze almofadas. 'A alta, a baixa, a anatómica, a de penas, a grande, a pequena...' E igual número de edredões, pijamas, sacos de água quente. Acumulou, no estojo, maquilhagem para disfarçar as olheiras que a cada dia iam escurecendo mais o rosto e a auto-estima. No mesmo período de tempo perdeu a memória recente – 'tinha que escrever senão esquecia-me de tudo' – a capacidade de concentração, coleccionou dores de cabeça, trancou-se em casa. Sozinha. 'Era uma pessoa muito triste, sem disposição para as coisas à minha volta e sem disposição para os outros. Acho que perdi muito a nível social, não tinha paciência para sair, doía--me a cabeça, estava sempre cansada'. Tudo o que era convites recusava. ‘Não, não e não. Hoje vou dormir’. Nunca dormia. Se adormecia, acordava. Hora a hora. Noite após noite. Hoje em dia só acorda às 05h00. 'É a minha hora', graceja a engenheira de 38 anos, dois meses depois de se ter começado a libertar do fantasma que todas as noites a visitava. A melatonina, uma hormona natural, foi a responsável pelo festejo. Já consegue brincar com o passado, mas não o esquece. 'Sinto-me quase uma pessoa normal'. Antes, 'acordava mais cansada do que me tinha deitado, pensar na hora de ir dormir era um terror, um sofrimento'. Os colegas e amigos não percebiam. ‘Se calhar não te deitas cedo, se calhar não tens hábitos nenhuns, se calhar és preguiçosa’. Habituou-se à lengalenga mas não aos olhares de reprovação. 'Sentia-me incompreendida'. Mas durante uma década fechou os olhos a procurar ajuda.
'Achava que era uma coisa de família porque o meu pai e a irmã dele dormiam mal e tinha que aguentar'. O fardo deixou-se carregar quando viu a médica Teresa Paiva na televisão. Procurou ajuda e percebeu que 'a insónia não é uma doença, é um sintoma de que alguma coisa está mal '. Não sabe exactamente o 'que é que estava mal'. Mas lembra-se que as insónias se instalaram na sua cama quando foi morar sozinha. 'Fiquei muito insegura, estava sempre alerta. E, por outro lado, era necessário que o que estivesse a fazer profissionalmente desse certo'. Tinha então 28 anos. 'Agora aprendi a relativizar e a não querer tudo para ontem. Antes, quando imaginava a minha vida aos 30 anos imaginava-a diferente. Estou a aprender a viver bem com aquilo que tenho'. Já não faz listas de supermercado enquanto está a tentar dormir. Tenta não pensar no dia que aí vem. Deixou de dar voltas na cama.
Mário também conhece bemo fantasma das insónias. Assombra-o há décadas de vida. Quem as trouxe também não tem rosto mas cheira a sofrimento: a guerra. Já passaram mais de 30 anos desde que a cama começou a tornar-se um poiso difícil para o engenheiro químico, hoje reformado, de 70 anos. 'Começaram quando soube que ia para a Guerra Colonial, não estava preparado e fui apanhado de surpresa pela minha ingenuidade. Fiquei muito ansioso, nem me deixaram acabar o curso'. A somar-se o casamento recente – seis meses antes – e a ilusão que ao início criou de que podia levar a mulher com ele para Angola. 'Foi muito traumático, um período muito doloroso'. As insónias começaram a bater à porta antes de abalar. Já em África, permaneceram. Ao voltar, 'agravaram-se'. Consultou psiquiatras para abafar a depressão crónica que também o acompanhava mas não conseguiu largar os comprimidos para dormir. Ainda hoje precisa deles. 'Muitas pessoas diziam--me que tinha saído ao meu pai, que também tinha insónias, mas irritava-me um bocado aquela coisa do ‘ai coitado, saiu ao pai’. Tanto insistiu que descobriu as causas. 'Além do sistema nervoso as minhas insónias são provocadas por três doenças do sono que os registos que a professora Teresa Paiva me fez descobriram', explica Mário, agora tranquilo.
Rita soube sempre a que devia as insónias que a acompanhavam. A um só episódio que a marcou de tal forma que lhe tirou o sono. 'Zanguei-me com uma pessoa que trabalhava comigo e com quem tinha uma relação amorosa. Foi a partir daí que deixei de conseguir adormecer, tal a ansiedade que tinha'. Passaram dois anos e a situação tem melhorado mas está longe de ser a ideal. 'Antes demorava horas para conseguir adormecer, agora já consigo dormir cinco, seis horas, o que já é muito bom. Mas tenho muita fé que vou conseguir voltar a dormir como antes'. As oito horas são a meta ideal para a secretária de 38 anos, divorciada e com um filho menor e que, a par das insónias, sofre da doença de Crohn [uma inflamação do intestino]. Considera-se uma 'mulher com muita força' mas confessa que o não dormir lhe retirou alguma 'paciência para o filho' e lhe acrescentou muitas dores de cabeça e nos olhos, que se tornaram 'muito difíceis de suportar no trabalho'. Também deixou de sair à noite 'para conseguir descansar'. Já a Nuno, as insónias adiaram-lhe o momento de acabar o curso de Engenharia Civil. Há dez anos que o iniciou. 'Como não consigo dormir de noite não consigo acordar para ir às aulas, sinto-me cansado, nem os comprimidos resultavam', conta o jovem de 28 anos. A Manuela, nome fictício, nem o facto de o marido se oferecer para dormir no escritório ajuda. Só se apercebeu que as insónias eram um problema quando as dores de cabeça que lhe provocavam a levaram ao médico com medo de uma doença grave. À psiquiatra Filipa a falta de sono provoca-lhe cansaço e desassossego. Não conta a ninguém o mal de que sofre por ter medo que a penalizem dada a profissão. Mas sofre e muito. Sofrem todos. E em Portugal são muitos, três milhões a ansiar por noites e sonhos mais tranquilos.
"DORMISMO PARA ESTARMOS DESPERTOS": Eduard Estivill, neurologista espanhol e autor de ‘Receitas para dormir bem’
Em Espanha há muitas pessoas com insónias ?
O Mundo é muito parecido. Cerca de 30% das pessoas sofrem de insónias.
E recorrem ao médico?
Até há pouco tempo as pessoas não iam ao médico, tomavam comprimidos para dormir. Mas é o médico que tem de encontrar a causa. Por exemplo, se alguém tem insónias porque tem muito stress os medicamentos não resolvem.
Nestes casos, o que aconselha?
É preciso ensinar esta pessoa a controlar a ansiedade durante o dia. Hoje sabemos que o sono é como uma fábrica onde são produzidos os processos de reparação e restauração. E que dormimos para estar despertos – mas também estamos despertos para poder dormir. É por isso importante como vivemos o nosso dia, porque se o vivemos com stress ao chegar à noite o cérebro não consegue desconectar.
É a causa mais frequente?
O stress tem aumentado nos últimos 20 anos. No meio rural é inferior mas nas cidades grandes temos cada vez mais gente, e gente mais jovem, com mais stress durante o dia e que, por isso, dorme mal durante a noite.
Há mais insónias nos países de-senvolvidos?
Não, o que há nos países desenvolvidos é mais insónias devido ao stress, porque as outras causas são muito parecidas independentemente da classe social e do país. A depressão e os maus hábitos, por exemplo, são iguais em todo o lado.
Sempre dormiu bem?
Sou como toda a gente. Normalmente, durmo bem, mas como toda a gente tenho alguns dias em que, por stress e viagens constantes, durmo pior. E algumas vezes ronco (risos).
E as crianças, têm insónias?
Têm insónias por hábitos incorrectos. E têm de aprender a dormir bem desde muito pequenas, mas isso tem de partir dos pais. O que hoje acontece é que, como os pais trabalham muito, estão pouco tempo com os filhos e há um excesso de protecção que a criança quer é o que a criança tem. E uma criança que dorme mal pode vir a ser um adulto que dorme mal.
Como devem agir os pais?
É preciso criar uma rotina, sempre, antes de ir dormir. Estar um tempo com a criança, de dez, vinte minutos, para cantar uma canção, contar uma história, falar com ela e pô-la na sua cama acordada. Não fazer nada para que durma. Porque se a habituamos a dormir abraçada ou agarrada à mão, se ela acordar não vai saber dormir sozinha e vai voltar a necessitar do pai ou da mãe. O mais importante é que não se abandona uma criança a deixá-la dormir, se os pais a põem na cama têm de voltar lá e dizer-lhe 'tu dormes aqui, com o teu boneco e com as tuas coisas, a tua chupeta'. Deixamos passar dois minutos e voltamos a entrar e a dizer o mesmo. Elas aprendem.
UM ‘GRUPO DE APOIO’ PECULIAR
Susana, Carla e Rita estão neste momento a frequentar um programa de Educação e Terapêutica do Sono – em oito sessões, o objectivo é que as pessoas alterem as crenças erradas sobre o sono, as suas presumíveis consequências e as ideias erradas acerca das causas da insónia. A influência deste programa é norte- -americana e, embora faça lembrar grupos como os Alcoólicos Anónimos, só a partilha de experiências entre os elementos da turma se assemelha. “Este é um programa que pretende ser instrutivo, para a modificação de comportamentos e atitudes”, esclarece a coordenadora do projecto, a psicóloga Helena Rebelo Pinto, alertando que para frequentar as sessões “as pessoas comprometem-se a cumprir com as obrigações que estabelecemos”. Têm que fazer pela higiene do sono. E escrever um registo detalhado de cada noite de sono. A que horas se deitou, quanto demorou a adormecer, quanto tempo esteve com insónia durante a noite, a que horas acordou e se tomou fármacos para dormir são exemplos deste registo. É também importante que tentem cumprir o horário de deitar e levantar estabelecido pela coordenadora. “A principal barreira que sinto nestas pessoas é o desânimo com que aqui chegam”, conclui Helena Rebelo Pinto.
http://www.correiodamanha.pt/noticia...0-000000000019
A noite traz o sofrimento àqueles que sabem que não vão conseguir dormir. Ir para a cama e só acordar de manhã. Quando o Sol raia estão cansados, incapazes de trabalhar. A vigília pode durar muito – dois, três, dez anos. Quase três milhões de portugueses têm insónias.
Há noites em que o desespero é tão grande que Susana não consegue silenciar os gritos nos lençóis da cama. O sofrimento torna-se palpável quando faz eco nas paredes da casa e se transforma em súplica. Nessas noites, em que o desespero é tão grande que se faz grito, os pais acordam e correm para a filha, uma mulher que fica mais menina quando a noite cai.
Susana tem 22 anos e sofre de insónia crónica. É estudante de Enfermagem, está a fazer os últimos estágios em hospitais antes de tentar a sorte no mercado de trabalho. Há cinco anos que tem medo de ir para a cama porque sabe, sente, tão certa, que não vai conseguir adormecer. 'Já experimentei tudo, desde as terapias alternativas como a acupunctura passando pelas mais banais'. Na hora de chamar o sono, já se imaginou deitada numa cama de rede a esfregar o pé na areia da praia, como a aconselhou uma amiga que garantiu que assim era certo e sabido que o sono vinha para ficar. Trocou de almofada com receio de se ter viciado naquela que sempre foi a sua, incitada pelo pai. Deitou-se mais cedo e foi para a cama mais tarde, consoante o que uns e outros diziam ser mais eficaz. Perdeu a conta aos banhos em que depositou a esperança que desta é que ia ser, é que ia conseguir dormir.
Sentada na cama que todas as noites assume a forma do Adamastor, Susana garante que talvez já se tenha habituado. Se é que é possível alguém se habituar ao cansaço. 'Há dias em que pesa. Acordo e sinto um vazio, a cabeça vazia. Ando aqui toda a noite a pensar, a pensar como faço para adormecer. Só queria desligar, apagar, conseguir. Nas noites de maior desespero já saí de casa e fui para a rua andar'.
E, acredita, talvez o problema fosse mais fácil de enfrentar se conseguisse encontrar uma explicação para a insónia. 'Foi aos 17 anos que comecei a dormir mal, mas não posso dizer que haja um motivo. Não sei se teve a ver com a entrada para a faculdade', conjectura. Mas quando o sono começou a tardar, Susana não hesitou em procurar ajuda. 'Mudei muitas vezes de médico e todos me medicaram erradamente porque diziam que era depressão', recorda a jovem que, na maioria dos dias, fica quatro, cinco, seis horas acordada a ver a manhã a nascer na janela. Não se lembra de uma única vez ter precisado do trinado do despertador para acordar. Antecipa-se. E orgulha-se de conseguir manter os olhos abertos para a vida normal.
'Não deixo de fazer nada, nem de sair à noite, embora saiba que quando chego a casa às cinco da manhã não vou dormir nada, nem vale a pena tentar'. Às vezes, quando o cansaço se torna pesado de mais, Susana ‘dispara’ 'para todo o lado'. E zanga-se com os pais, com quem vive, 'apesar de não terem culpa de nada'. As manhãs são, por isso, tudo menos fáceis. 'Quando acordo pergunto-me: será que dormi bem ou dormi mal? Para nós os, que não conseguimos, dormir é uma obsessão que não nos larga, vive connosco'.
São histórias de sofrimento como a de Susana que se sentam todos os dias no consultório da neurologista Teresa Paiva. À espera da solução, da cura, ‘do vai ser possível’. 'As pessoas chegam aqui muito sofridas, com dores difíceis de tratar' conta a médica especialista em problemas do sono, admitindo que 'a abordagem a fazer a estes doentes é muito complicada'. Os casos 'tornam--se mais difíceis quando há uma associação da patologia psiquiátrica, excesso de medicação e problemas de vida persistentes'. Certo é que 'as pessoas com insónia moderada ou severa têm uma pior qualidade de vida, correm um risco maior de sofrer acidentes e têm grandes dificuldades de concentração'.
Carla sabe bem o que isso é. Na história de vida desta engenheira agrónoma o sofrimento escreve-se com o número 10. Um número demasiado redondo para o caso bicudo dos problemas de sono que enfrentou durante uma década. Em dez anos experimentou doze almofadas. 'A alta, a baixa, a anatómica, a de penas, a grande, a pequena...' E igual número de edredões, pijamas, sacos de água quente. Acumulou, no estojo, maquilhagem para disfarçar as olheiras que a cada dia iam escurecendo mais o rosto e a auto-estima. No mesmo período de tempo perdeu a memória recente – 'tinha que escrever senão esquecia-me de tudo' – a capacidade de concentração, coleccionou dores de cabeça, trancou-se em casa. Sozinha. 'Era uma pessoa muito triste, sem disposição para as coisas à minha volta e sem disposição para os outros. Acho que perdi muito a nível social, não tinha paciência para sair, doía--me a cabeça, estava sempre cansada'. Tudo o que era convites recusava. ‘Não, não e não. Hoje vou dormir’. Nunca dormia. Se adormecia, acordava. Hora a hora. Noite após noite. Hoje em dia só acorda às 05h00. 'É a minha hora', graceja a engenheira de 38 anos, dois meses depois de se ter começado a libertar do fantasma que todas as noites a visitava. A melatonina, uma hormona natural, foi a responsável pelo festejo. Já consegue brincar com o passado, mas não o esquece. 'Sinto-me quase uma pessoa normal'. Antes, 'acordava mais cansada do que me tinha deitado, pensar na hora de ir dormir era um terror, um sofrimento'. Os colegas e amigos não percebiam. ‘Se calhar não te deitas cedo, se calhar não tens hábitos nenhuns, se calhar és preguiçosa’. Habituou-se à lengalenga mas não aos olhares de reprovação. 'Sentia-me incompreendida'. Mas durante uma década fechou os olhos a procurar ajuda.
'Achava que era uma coisa de família porque o meu pai e a irmã dele dormiam mal e tinha que aguentar'. O fardo deixou-se carregar quando viu a médica Teresa Paiva na televisão. Procurou ajuda e percebeu que 'a insónia não é uma doença, é um sintoma de que alguma coisa está mal '. Não sabe exactamente o 'que é que estava mal'. Mas lembra-se que as insónias se instalaram na sua cama quando foi morar sozinha. 'Fiquei muito insegura, estava sempre alerta. E, por outro lado, era necessário que o que estivesse a fazer profissionalmente desse certo'. Tinha então 28 anos. 'Agora aprendi a relativizar e a não querer tudo para ontem. Antes, quando imaginava a minha vida aos 30 anos imaginava-a diferente. Estou a aprender a viver bem com aquilo que tenho'. Já não faz listas de supermercado enquanto está a tentar dormir. Tenta não pensar no dia que aí vem. Deixou de dar voltas na cama.
Mário também conhece bemo fantasma das insónias. Assombra-o há décadas de vida. Quem as trouxe também não tem rosto mas cheira a sofrimento: a guerra. Já passaram mais de 30 anos desde que a cama começou a tornar-se um poiso difícil para o engenheiro químico, hoje reformado, de 70 anos. 'Começaram quando soube que ia para a Guerra Colonial, não estava preparado e fui apanhado de surpresa pela minha ingenuidade. Fiquei muito ansioso, nem me deixaram acabar o curso'. A somar-se o casamento recente – seis meses antes – e a ilusão que ao início criou de que podia levar a mulher com ele para Angola. 'Foi muito traumático, um período muito doloroso'. As insónias começaram a bater à porta antes de abalar. Já em África, permaneceram. Ao voltar, 'agravaram-se'. Consultou psiquiatras para abafar a depressão crónica que também o acompanhava mas não conseguiu largar os comprimidos para dormir. Ainda hoje precisa deles. 'Muitas pessoas diziam--me que tinha saído ao meu pai, que também tinha insónias, mas irritava-me um bocado aquela coisa do ‘ai coitado, saiu ao pai’. Tanto insistiu que descobriu as causas. 'Além do sistema nervoso as minhas insónias são provocadas por três doenças do sono que os registos que a professora Teresa Paiva me fez descobriram', explica Mário, agora tranquilo.
Rita soube sempre a que devia as insónias que a acompanhavam. A um só episódio que a marcou de tal forma que lhe tirou o sono. 'Zanguei-me com uma pessoa que trabalhava comigo e com quem tinha uma relação amorosa. Foi a partir daí que deixei de conseguir adormecer, tal a ansiedade que tinha'. Passaram dois anos e a situação tem melhorado mas está longe de ser a ideal. 'Antes demorava horas para conseguir adormecer, agora já consigo dormir cinco, seis horas, o que já é muito bom. Mas tenho muita fé que vou conseguir voltar a dormir como antes'. As oito horas são a meta ideal para a secretária de 38 anos, divorciada e com um filho menor e que, a par das insónias, sofre da doença de Crohn [uma inflamação do intestino]. Considera-se uma 'mulher com muita força' mas confessa que o não dormir lhe retirou alguma 'paciência para o filho' e lhe acrescentou muitas dores de cabeça e nos olhos, que se tornaram 'muito difíceis de suportar no trabalho'. Também deixou de sair à noite 'para conseguir descansar'. Já a Nuno, as insónias adiaram-lhe o momento de acabar o curso de Engenharia Civil. Há dez anos que o iniciou. 'Como não consigo dormir de noite não consigo acordar para ir às aulas, sinto-me cansado, nem os comprimidos resultavam', conta o jovem de 28 anos. A Manuela, nome fictício, nem o facto de o marido se oferecer para dormir no escritório ajuda. Só se apercebeu que as insónias eram um problema quando as dores de cabeça que lhe provocavam a levaram ao médico com medo de uma doença grave. À psiquiatra Filipa a falta de sono provoca-lhe cansaço e desassossego. Não conta a ninguém o mal de que sofre por ter medo que a penalizem dada a profissão. Mas sofre e muito. Sofrem todos. E em Portugal são muitos, três milhões a ansiar por noites e sonhos mais tranquilos.
"DORMISMO PARA ESTARMOS DESPERTOS": Eduard Estivill, neurologista espanhol e autor de ‘Receitas para dormir bem’
Em Espanha há muitas pessoas com insónias ?
O Mundo é muito parecido. Cerca de 30% das pessoas sofrem de insónias.
E recorrem ao médico?
Até há pouco tempo as pessoas não iam ao médico, tomavam comprimidos para dormir. Mas é o médico que tem de encontrar a causa. Por exemplo, se alguém tem insónias porque tem muito stress os medicamentos não resolvem.
Nestes casos, o que aconselha?
É preciso ensinar esta pessoa a controlar a ansiedade durante o dia. Hoje sabemos que o sono é como uma fábrica onde são produzidos os processos de reparação e restauração. E que dormimos para estar despertos – mas também estamos despertos para poder dormir. É por isso importante como vivemos o nosso dia, porque se o vivemos com stress ao chegar à noite o cérebro não consegue desconectar.
É a causa mais frequente?
O stress tem aumentado nos últimos 20 anos. No meio rural é inferior mas nas cidades grandes temos cada vez mais gente, e gente mais jovem, com mais stress durante o dia e que, por isso, dorme mal durante a noite.
Há mais insónias nos países de-senvolvidos?
Não, o que há nos países desenvolvidos é mais insónias devido ao stress, porque as outras causas são muito parecidas independentemente da classe social e do país. A depressão e os maus hábitos, por exemplo, são iguais em todo o lado.
Sempre dormiu bem?
Sou como toda a gente. Normalmente, durmo bem, mas como toda a gente tenho alguns dias em que, por stress e viagens constantes, durmo pior. E algumas vezes ronco (risos).
E as crianças, têm insónias?
Têm insónias por hábitos incorrectos. E têm de aprender a dormir bem desde muito pequenas, mas isso tem de partir dos pais. O que hoje acontece é que, como os pais trabalham muito, estão pouco tempo com os filhos e há um excesso de protecção que a criança quer é o que a criança tem. E uma criança que dorme mal pode vir a ser um adulto que dorme mal.
Como devem agir os pais?
É preciso criar uma rotina, sempre, antes de ir dormir. Estar um tempo com a criança, de dez, vinte minutos, para cantar uma canção, contar uma história, falar com ela e pô-la na sua cama acordada. Não fazer nada para que durma. Porque se a habituamos a dormir abraçada ou agarrada à mão, se ela acordar não vai saber dormir sozinha e vai voltar a necessitar do pai ou da mãe. O mais importante é que não se abandona uma criança a deixá-la dormir, se os pais a põem na cama têm de voltar lá e dizer-lhe 'tu dormes aqui, com o teu boneco e com as tuas coisas, a tua chupeta'. Deixamos passar dois minutos e voltamos a entrar e a dizer o mesmo. Elas aprendem.
UM ‘GRUPO DE APOIO’ PECULIAR
Susana, Carla e Rita estão neste momento a frequentar um programa de Educação e Terapêutica do Sono – em oito sessões, o objectivo é que as pessoas alterem as crenças erradas sobre o sono, as suas presumíveis consequências e as ideias erradas acerca das causas da insónia. A influência deste programa é norte- -americana e, embora faça lembrar grupos como os Alcoólicos Anónimos, só a partilha de experiências entre os elementos da turma se assemelha. “Este é um programa que pretende ser instrutivo, para a modificação de comportamentos e atitudes”, esclarece a coordenadora do projecto, a psicóloga Helena Rebelo Pinto, alertando que para frequentar as sessões “as pessoas comprometem-se a cumprir com as obrigações que estabelecemos”. Têm que fazer pela higiene do sono. E escrever um registo detalhado de cada noite de sono. A que horas se deitou, quanto demorou a adormecer, quanto tempo esteve com insónia durante a noite, a que horas acordou e se tomou fármacos para dormir são exemplos deste registo. É também importante que tentem cumprir o horário de deitar e levantar estabelecido pela coordenadora. “A principal barreira que sinto nestas pessoas é o desânimo com que aqui chegam”, conclui Helena Rebelo Pinto.
http://www.correiodamanha.pt/noticia...0-000000000019
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